O Espiritismo contou com grandes mentes e corações para que pudesse ser construído através de muita pesquisa, trabalho, reflexão e mesmo abnegação. É grande a lista de figuras públicas que, ao longo dos últimos um século e meio, se destacaram e, consequentemente, se tornaram inspiração intelectual ou ética dentro do movimento espírita. Isso é natural em qualquer movimento filosófico, religioso ou social.
Entretanto, muitas vezes, em um gesto até certo ponto muito comum à humanidade, a admiração frequentemente se transforma em adoração, em mitificação, o que por sua vez considero bastante ruim e até mesmo perigoso, pois desumaniza aqueles que se destacam ou se tornam figuras públicas, podendo estimular a adoção de posturas acríticas perante estes.
Jamais podemos perder de vista a noção espírita de evolução[1]. Todas e todos que estão encarnados na Terra estão em processo de evolução, ou seja, de amadurecimento intelecto-moral na direção da sabedoria, da sensibilização e de valores como o respeito, a não violência, a empatia, o altruísmo. Sendo assim, não se pode esquecer que mesmo grandes vultos do Espiritismo do passado ou do presente são seres em evolução, pessoas que podem ser brilhantes intelectualmente em algumas áreas, destacadas do ponto de vista ético, abnegadas em suas tarefas, mas ainda assim seres humanos, que podem se equivocar, que ignoram determinadas informações ou conhecimentos, que podem sentir insegurança, impaciência, medo, raiva, tristeza.
Penso que lançar esse olhar humanizante é não só saudável, mas mesmo fundamental para uma noção mais ampla e profunda do Espiritismo e da vida. Todo ser humano é limitado pelo tempo, pelo lugar, pela cultura e sociedade onde nasceu. É justamente por isso que, na perspectiva espírita, precisamos reencarnar, pois assim experimentamos múltiplas experiências e, dessa forma, expandimos nossa capacidade de pensar e de sentir.
Jamais podemos abrir mão de pensar criticamente. Entretanto, é também relevante expor o que aqui entendo por crítica e pensamento crítico. Quando é mencionado o termo crítica, tenho a impressão de que em boa parte das pessoas ele soa de forma negativa. Muitos parecem interpretar a crítica como sendo falar mal de alguém, de alguma ideia ou de algo. Entretanto, é justo apontar que a crítica vai muito além disso. Avalio que, antes de tudo, a crítica é, por exemplo, uma avaliação sobre alguma ideia.
Nossa avaliação sobre algo pode ser positiva como também pode ser negativa, como também pode concordar com alguns pontos e discordar de outros. E o mais importante: posso criticar determinada ideia sem necessariamente odiar ou marginalizar a pessoa que a emitiu. Posso criticar uma ideia e ser profundamente amigo de quem a formulou, mas, justamente por querer ver o melhor da pessoa a quem estimo, dou a minha avaliação/crítica sobre o que ela pensa com o intuito de contribuir ou melhorar o máximo possível suas ideias.
Acredito que precisamos mais dessa perspectiva intelectual de crítica, passando a enxergá-la como algo muito positivo, desde que bem intencionada, educada, respeitosa, fraterna e empática. Uma ideia ou pessoa que nunca é questionada tem fortes chances de ser extremamente frágil. A crítica, quando equilibrada e respeitosa, aprimora e refina as ideias.
Basta recorrermos ao esquema dialético, onde temos uma ideia A (tese) e uma ideia B (antítese) e, a partir do choque, do embate entre essas ideias, teremos uma ideia C (uma síntese, uma nova ideia ou perspectiva). Muitas vezes, quando somos confrontados por um novo ponto de vista de alguém, acabamos pensando diferente, podemos até mesmo mudar nossas conclusões e ideias ou simplesmente fortalecer um pouco mais o que já pensávamos.
Dessa forma, a crítica equilibrada às ideias pode ser muito saudável e importante para o amadurecimento pessoal, coletivo ou institucional. O próprio Kardec não se nega ao debate, à troca, à crítica de ideias. Na introdução da Revista Espírita de janeiro de 1858 ele escreve o seguinte: “Nossa Revista será, assim, uma tribuna livre, em que a discussão jamais se afastará das normas da mais estrita conveniência. Numa palavra: discutiremos, mas não disputaremos.” (KARDEC, sem data, p. 24)
Nesse periódico, ao longo de vários anos, Kardec deu vários exemplos dessa crítica sadia, sustentando debates, experimentando ideias, trocando, ouvindo, dialogando, elaborando e reelaborando.
Fazendo alusão à importância da avaliação racional e crítica, o Espírito Erasto, no item 230 de O Livro dos Médiuns escreve o seguinte em determinado trecho:
Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossos olhos, de manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem. Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea. (KARDEC, 2013, p. 246)
Essa era a postura de abertura e de debate que vigorava no Espiritismo nascente e que acredito mesmo ter sido fundamental para a sobrevivência e continuidade da doutrina. Nessa perspectiva, afirmo com tranquilidade que absolutamente todo autor(a), médium, Espírito, tem que ser lido de forma crítica. O que não nos agrada, não devemos aceitar de forma passiva, mas sim criticar, raciocinar, conversar com outras pessoas – sem jamais se esquecer do princípio da caridade. Isso é fundamental. E essa era uma postura que figuras como Allan Kardec ou Léon Denis sempre tiveram. Corrobora esse pensamento a frase que está inscrita na folha de rosto de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.” (KARDEC, 2013, sem página).
Além do mais, o próprio Kardec aponta, em A Gênese, esse caráter dinâmico e aberto do Espiritismo, que só é possível quando há esse ambiente de abertura e crítica sadia:
Entendendo-se com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, (...)
Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. (KARDEC, 2013, p. 41-42)
É importante apontar que outro possível efeito da desumanização dos grandes vultos do Espiritismo é que podemos vir a criar pressão desproporcional sobre as pessoas, como se todos tivessem que agir exatamente igual aos nomes que se destacaram publicamente. Isso pode vir a criar, inconscientemente, padrões que não conseguimos atingir e que, por sua vez, podem ser geradores de culpa e desânimo. Nesse sentido, acredito que um olhar humanizante para essas figuras pode nos aproximar delas, motivando-nos e fortalecendo-nos.
Sobre esse ponto, há uma citação do Pastor Henrique Vieira em que ele escreve o seguinte:
O exercício do amor não significa que nos tornaremos seres ideais, com pensamentos puros e atitudes boas o tempo inteiro. É ingenuidade pensar assim, e é perigoso também, porque estabelece uma demanda da qual ninguém dá conta, e, da frustração, nascem a culpa e a permanente insatisfação. O amor não nos maquiniza ou programa para ações sempre ajustadas e perfeitas. Ele não nos imuniza dos conflitos, não nos faz pairar sobre a história. Continuamos sendo precários, finitos, contraditórios e vulcânicos em nossos sentimentos e ações. Qualquer visão que exclua essa realidade tende a pesar demais. Somos demasiada e fantasticamente humanos, e o amor não suprime ou supera essas tensões de nossa existência. Há dias que são ruins, em que estamos mais estressados e intolerantes, que não conseguimos agir de maneira mais justa e adequada. (VIEIRA, 2019, p. 42)
Ainda no mesmo sentido, o médico e espírita brasileiro Sergio Lopes acrescenta:
Muita gente confunde crescimento espiritual com sacrifícios penosos, ou mesmo sofrimentos voluntários que, muitas das vezes, se dão mais porque a própria pessoa não procura recursos.
Há pessoas, bem intencionadas, diga-se de passagem, mas que resolveram virar santos rapidamente. Querem alcançar uma evolução impossível da noite para o dia. No entanto, o que a humanidade está precisando não é de indivíduos super-humanos, mas de seres humanos apenas. Pessoas capazes de serem melhores no seu dia a dia, indivíduos comuns, sem afetação, mas com o propósito de uma vida mais ética. (LOPES, 2007, p. 86)
Além disso, a mitificação de indivíduos também pode vir a ser uma grande geradora de decepções, porque se coloco todas as fichas de confiança e fé num palestrante e mais cedo ou mais tarde este comete algum equívoco – o que até certo ponto é natural, pois é um ser em evolução –, posso vir a me decepcionar com o Espiritismo por achar que aquela pessoa era o Espiritismo. Ter referências é importante, mas é também necessário nos apegarmos com ideias e ideais, e não apenas com pessoas, que são todas falíveis em certa medida no estado atual da Terra.
Por fim, a mitificação de nomes e indivíduos gera muita pressão sobre os próprios autores, autoras, médiuns, palestrantes, aumentando ainda mais seus desafios e tribulações, além de estimular-lhes, inconscientemente, orgulho, vaidade. Nessa perspectiva, a mitificação seria ainda uma falta de caridade[2].
Que possamos nos relacionar com o Espiritismo de forma aberta, dialógica, generosa, e que este possa ser uma ferramenta para nos estimular um olhar humanizante, acolhedor, crítico e fraterno ao mesmo tempo, a exemplo do que Kardec fez durante sua trajetória de pesquisa e sistematização da doutrina.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KARDEC, Allan. A Gênese [tradução de Guillon Ribeiro da 5a ed. francesa]. 53. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo [tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866]. 131. ed. 2. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, ou, guia dos médiuns e dos evocadores: Espiritismo experimental [tradução de Guillon Ribeiro a partir da 49a edição francesa de 1861]. 81. ed. 1. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013.
KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos 1858 [tradução de Evandro Noleto Bezerra]. Brasília: Federação Espírita Brasileira. Disponível em: https://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1858.pdf Acesso em 26 jan 2022.
LOPES, Sergio Luis da Silva. Leis Morais e Saúde Mental: Um Estudo da Terceira Parte de O Livro dos Espíritos. 7. ed. Porto Alegre: Francisco Spinelli, 2007.
SOLER, Amália Domingo. Memórias do Padre Germano. 14. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1980.
VIEIRA, Henrique. O Amor como Revolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.
[1] Ver O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, em sua Parte Terceira, capítulo VIII, intitulado “Da lei do progresso”.
[2] Recomendo aqui a leitura da obra Memórias do Padre Germano, editada pela FEB, e de autoria de Amália Domingo Soler. Neste livro, o personagem principal – Germano – dá variados exemplos de uma postura humanizante.
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