top of page

Pesquise no site

65 itens encontrados para ""

  • O Catolicismo na França de Kardec - Parte 2

    Rodrigo Farias - 2a parte - Fevereiro 2024 No artigo anterior, falamos de alguns dos desafios que a Igreja Católica Romana enfrentou entre fins do século XVIII e meados do XIX. Hoje trataremos de como ela reagiu a isso e, no dizer do historiador Ambrogio Caiani, “perdeu um reino para ganhar o mundo”. A expressão já antecipa o fim dessa história. Os Estados Papais, que a Igreja se esforçou tanto para preservar nas primeiras décadas do século, foram engolidos durante o processo de unificação da Itália, em 1861. Dividida durante séculos em vários reinos, ducados e cidades-estado, foi só depois de muita articulação política e conflitos militares que a Península Italiana se tornou um só país. A Igreja Católica fez o que pôde para proteger seus territórios disso, inclusive mobilizando tropas papais e voluntários vindos de todo o mundo. Mas foi inútil. E para tornar a derrota ainda mais amarga, o novo Estado italiano escolheu ter sua capital justamente em Roma, a sede da Santa Sé, até então governada pelo Papa.  Era o fim de uma era. O governo direto da Igreja sobre largos territórios deixava oficialmente de existir. Isso não queria dizer que ela perdera toda a sua influência. Na Irlanda, por exemplo, um clero conservador dominava a vida cultural do país; na América Latina, o status da Igreja e de suas propriedades ainda era um grande pivô nas disputas e guerras civis entre liberais e conservadores. Mas ainda assim, o Catolicismo sofrera um baque: o moderno Estado liberal havia lhe imposto uma derrota no coração de seus domínios. Mas essa perda de poder temporal viria a ser contrabalançada por uma revitalização do poder espiritual . Se não era mais possível mais ter um reino literal sob seu comando, o poder eclesiástico sobre milhões de corações e mentes em todo o mundo ainda era uma realidade. E alguns eventos sobrenaturais vieram reforçar essa influência. Por exemplo, o que aconteceu em 1846, na cidadezinha de La Salette, nos Alpes franceses. Dois adolescentes, Maximin Giraud e Mélanie Calvat, cuidavam de algumas vacas quando se depararam com uma misteriosa dama, alta e luminosa, que chorava copiosamente sentada sobre uma pedra. “Não tenham medo”, ela lhes disse, dando-lhes algumas boas notícias. Embora o seu filho estivesse zangado com o mundo, por este ter se afastado de Deus, ainda havia tempo para o arrependimento e a conversão. Também deu conselhos sobre a plantação de batatas, que vinha sofrendo com pragas desde anos anteriores. E, por fim, recomendou que o povo orasse mais, recitando o Pai-Nosso e a Ave Maria, e confiou alguns segredos aos dois jovenzinhos. Depois disso, a depender da versão dada por Maximin e Mélanie, a Senhora subiu até as nuvens ou desapareceu por trás da montanha próxima. A história logo chegou ao padre local e, mais tarde, aos bispos, que autenticaram a história. Logo La Salette se tornou ponto de peregrinação de devotos, que creem que a “Senhora” era ninguém menos que a Virgem Maria. Em 1858, fenômeno parecido se deu em Lourdes, também na França, e se tornou ainda mais famoso. Novamente uma jovem, Bernadette Subirous, de 14 anos, se deparou com uma mulher misteriosa numa gruta enquanto buscava lenha. Logo ela percebeu que sua irmã e a amiga que a acompanhavam não conseguiam vê-la. Voltando outras vezes, Bernadette chegou a fazer um “teste”, jogando água benta na aparição e rezando o rosário, e se convenceu de que ela não era de origem demoníaca. A partir do terceiro encontro, de um total de 18, a mulher começou a falar com Bernadette, pedindo-lhe que voltasse outras vezes. A história desses encontros se espalhou, e mais uma vez coisas fantásticas começaram a acontecer. Como em La Salette, uma fonte de água brotou no local, e peregrinos começaram a frequentá-la. Não tardou para que relatos de curas milagrosas começassem a circular, aumentando ainda mais a visibilidade de Lourdes. Clérigos e até policiais interrogaram a jovem Bernadette, que passou a visitar a gruta sob o olhar de uma multidão de curiosos e devotos. As aparições se estenderam de fevereiro a julho de 1858, e ao fim a França tinha o que viria a ser um dos mais famosos centros de peregrinação cristã do mundo. A partir daí, todos os anos, dezenas e dezenas de curas eram atribuídas à fonte miraculosa e à intercessão da Virgem. Um detalhe na história de Lourdes chama atenção. Quando Bernadette perguntou à senhora quem ela era, a resposta foi: “Sou a Imaculada Conceição”. Esse era o termo usado para o mais novo dogma católico, proclamado pelo Papa Pio IX em 1854. Segundo ele, Maria de Nazaré não fora uma mortal qualquer: além de perpetuamente virgem, intocada pelo desejo sexual, ela fora concebida sem a mancha do pecado original que, na doutrina católica, assola o resto da humanidade. Por consequência, Maria não era apenas mais uma santa, mas um ser excepcional desde antes mesmo de receber Jesus em seu ventre. Dessa forma, a devoção a Maria, que existia há séculos, ganhava uma clareza teológica que jamais tivera. Se antes um S. Tomás de Aquino, por exemplo, podia rejeitar a Imaculada Conceição como uma hipótese não convincente, agora, por decreto papal, quem duvidasse dessa condição singular de Maria seria automaticamente excomungado. Afinal, dogma não se discute. Mas Pio IX não parou por aí. O mais importante papa do século XIX deu ainda outro passo para reafirmar o poder espiritual da Igreja, e do seu cargo de papa. Era preciso, em sua visão, combater os erros que tornavam a sociedade moderna, com suas ideias liberais vindas do Iluminismo, uma inimiga da única fé legítima. Primeiro, em 1864, ele publicou o Sílabo dos Erros , nos quais enumerava dezenas de ideias e práticas que a Igreja condenava — em particular, várias das liberdades que mencionamos no último episódio: liberdade religiosa, liberdade de imprensa, a separação entre Estado e Igreja, e até o racionalismo, as doutrinas de religião natural e a soberania popular. Pouco depois, em 1869, Pio IX daria um passo além e, no Concílio Vaticano I, tornou oficial o dogma da infalibilidade papal . Isso significava que a Igreja oficializava e investia toda sua autoridade na crença de que o Papa, quando falava a partir da autoridade de seu cargo, não podia errar  em matéria moral ou religiosa, e, portanto, seus decretos nessas áreas eram compulsórios para todo católico. Nada mais de discussões infindáveis de pontos teológicos: Roma locuta , causa finita . Era o sonho dos ultramontanos: a Igreja Católica finalmente se unificava sob uma única autoridade, ainda que agora só no sentido espiritual. Foi justamente nesse momento, diante dessa Igreja em guerra aberta aos princípios da modernidade, que uma nova forma de espiritualismo surgiu, abraçada justamente aos valores que o Sílabo de 1864 rejeitava. Ciência, racionalidade, progresso, reforma social e, acima de tudo, liberdade eram as marcas dessa nova forma de vivenciar a espiritualidade — nas quais o Espiritismo de Allan Kardec se incluía.   Bibliografia sugerida CAIANI, Ambrogio A.   Losing a Kingdom, Gaining the World: The Catholic Church in the Age of Revolution and Democracy.   Apollo, 2023. [Edição Kindle.] DUFFY, Eamon . Saints and Sinners: A History of the Popes . Yale University Press, 2014. [Edição Kindle.] SHARP, Lynn L. Secular Spirituality: Reincarnation and Spiritism in Nineteenth-Century France . Lexington Books, 2006.   [Edição Kindle.]

  • O Catolicismo na França de Kardec – Parte I

    Rodrigo Farias Para entender qualquer movimento, seja ele filosófico, religioso, social ou político, a compreensão do seu contexto é fundamental. Para isso, é preciso olhar não apenas para o que o próprio movimento diz, mas também para o que está acontecendo à sua volta em seu lugar e tempo de origem. No caso específico do Espiritismo, surgido na França de meados do século XIX, uma boa forma de começar é olhar para a principal força religiosa atuante no país, e à qual Kardec se viu forçado a responder em vários pontos de sua obra: a Igreja Católica Romana. Assim, é dela que falaremos neste artigo, apresentando um breve sobrevoo sobre o estado da Igreja, em especial na França, durante aproximadamente o período entre a ascensão de Napoleão Bonaparte e o Concílio Vaticano I.   A situação da Igreja na França passou por mudanças traumáticas na virada do século XVIII para o XIX. Antes da Revolução de 1789, a Igreja era um pilar da ordem estabelecida, depois chamada de Antigo Regime. Nele, uma sociedade de nobres e plebeus era governada por um rei por suposto direito divino com as bênçãos da autoridade religiosa. Não é de espantar que, quando a Revolução veio o ataque à Igreja foi feroz. A crítica iluminista à religião cristã como superstição e obscurantismo, agora deu vazão à repressão, ao confisco de bens, a cassação de privilégios, o controle estatal e até a tentativa de fundar uma nova religião da Razão. O anticlericalismo se tornaria um traço frequente da ideologia liberal que inspirava os revolucionários, especialmente na França, ao longo de todo o século.   Mas nem tudo era ideologia ou desejo de desforra. Havia um componente prático na preocupação dos liberais com a Igreja. Afinal, numa época de comunicações precárias e sem ensino público, era ela, a Igreja, a instituição com maior alcance no seio do povo. O clero não apenas dominava as poucas escolas existentes, mas seus sermões ajudavam a formar a opinião pública, fosse para defender mudanças – como tantos religiosos fizeram na Revolução de 1789 – ou, o que era mais comum, para deixar as coisas como estavam.   Os governantes europeus sabiam muito bem disso. Ainda no tempo de Luís XIV, o grande ícone do absolutismo monárquico, a França adotou oficialmente o Galicanismo. Esse movimento dizia que a Igreja de cada país devia estar subordinada ao rei, e não ao Papa. Então, era natural que esse mesmo rei, escolhido por Deus, escolhesse os bispos da Igreja em seu território, e até os destituísse quando julgasse apropriado. Dessa forma, a estrutura da Igreja se tornava um recurso a mais nas mãos de um Estado que se valia da fé cristã para se sustentar.     O problema era que, nessa época, a Igreja também tinha interesses temporais, não só espirituais. Por exemplo, ela governava territórios próprios, os Estados Papais, mais ou menos no centro da Itália de hoje. Defendê-los era questão de honra para os papas, especialmente nesse momento da história, o início do século XIX, em que a autoridade eclesiástica era tão contestada, fosse por quem queria extingui-la em nome da razão ou dos que queriam usurpá-la para si. E mais de uma vez, o Papa precisou pedir a potências estrangeiras, como a Áustria, que ajudassem os exércitos papais – isso mesmo, exércitos papais –  a repelir invasores ou abafar revoltas dos seus próprios súditos. Súditos esses que, muitas vezes, queriam para si as mesmas liberdades  que os revolucionários de 89 tinham instituído primeiro na França e depois noutras partes da Europa.     O liberalismo foi a fonte filosófica dos grandes princípios usados pela burguesia na Revolução Francesa. Os chamados direitos civis, hoje consagrados nas constituições de todas as democracias modernas dignas desse nome, nascem dessa maneira de entender a política. Entre esses direitos, na época chamados de liberdades  (daí o termo “liberalismo”), alguns eram vistos pelos mais conservadores dentro da Igreja como uma ameaça em potencial: a liberdade de consciência, ou seja, poder crer em qualquer religião que se queira; liberdade de culto, ou seja, poder praticar , sem represália ou limitação legal, os ritos de sua fé; liberdade de expressão, que significava exprimir seu pensamento sem, por exemplo, temer acusações de heresia, blasfêmia ou impiedade; e a liberdade de imprensa, pela qual as opiniões inconvenientes podiam se espalhar pelo restante da sociedade; isso sem falar das iniciativas por uma educação laica, que ameaçavam uma atividade que há séculos era praticamente uma prerrogativa eclesiástica. Do ponto de vista da Igreja, que se via como a guardiã da moral e do bem-estar espiritual da sociedade, reconhecer tais direitos era como abrir mãos dos poderes que lhe permitiam cumprir adequadamente seu papel, pois nessa época a ideia de que religião era uma questão privada de cada um ainda soava controversa. Pelo contrário, ainda era forte nas fileiras clericais a crença de que a Igreja tinha o direito legítimo, e o dever, de fiscalizar as ideias que circulavam na sociedade para assim salvar o maior número de almas por todos os meios necessários.  Para ela, portanto, o poder temporal era uma ferramenta de salvação.   Voltando ao caso francês, existia ali o Galicanismo , um movimento que se consolidou durante o reino do rei Luís XIV, na segunda metade do século 17. Sua tese principal era a de que a Igreja de cada país devia estar subordinada ao monarca, e não ao Papa. Lembremos que essa é uma época em que se trabalhava com a ideia de que a autoridade do soberano era dada diretamente por Deus. Não por acaso, é do mesmo Luís XIV a célebre frase L’État c’est moi (O Estado sou eu). Então, seria natural que esse mesmo rei escolhido por Deus escolhesse os bispos da Igreja em seu território, e até os destituísse quando julgasse apropriado. Além disso, o galicanismo também propunha que o soberano era independente do papa em assuntos temporais e que a autoridade do Sumo Pontífice estava abaixo da dos concílios, e suas decisões poderiam ser alteradas por eles.   O Galicanismo sobreviveu na Igreja francesa aos abalos da revolução e do Império Napoleônico. Era uma doutrina muito conveniente para os governantes, e foi mantida mesmo depois da volta da dinastia Bourbon ao poder, a partir de 1814. Isso gerou um movimento católico de reação e conhecido como Ultramontanismo,  que defendia com afinco que o Papa, e não o rei ou os concílios, deveria ser a autoridade máxima da igreja em todos os assuntos. No começo, esse ultramontanismo se misturava com os chamados reacionários, aqueles que queriam fazer o relógio voltar para trás, para antes da Revolução Francesa – e assim devolver o maior número possível de  privilégios do clero e da nobreza. E eles bem que tentaram: nesse período que vai da queda de Napoleão até 1830, a política assume formas bem conservadoras. Havia eleições, mas só podia votar ou se candidatar quem tivesse um certo nível de renda e propriedade. E, para azar dos ultramontanos, a dinastia restaurada, apesar de se dizer católica e devota, não  renunciou ao poder que o Galicanismo lhe dava. A luta para centralizar o poder religioso a Roma continuava.   Mas, em 1830, veio o susto. Uma nova revolução explodiu na França. Barricadas se erguem em Paris, multidões saem à rua, e o rei Carlos X é posto para fora em nome de princípios liberais. Mais uma vez, os Bourbons perdem o poder, e agora para sempre. Em seu lugar, assume Luís Felipe de Orléans, conhecido como o “rei burguês”. Luís Felipe, frequentemente visto com chapéu e guarda-chuva, não ostentava a pompa dos antecessores. Em seu governo, a burguesia, e não a nobreza e o clero, era a principal beneficiária. Mas ele também não renunciou ao sistema galicano. O Estado continuava nomeando e remunerando clérigos.   Essa situação, que não era só na França, foi um estímulo para Roma iniciar um processo de reafirmação de sua autoridade que se estendeu pelas próximas décadas. E não foi só uma questão de política, mas que também envolveu milagres, novos dogmas, e até guerras. Disso trataremos no próximo artigo.   Bibliografia: CAIANI, Ambrogio A.   Losing a Kingdom, Gaining the World: The Catholic Church in the Age of Revolution and Democracy. Apollo, 2023. [Edição Kindle.] DUFFY, Eamon . Saints and Sinners: A History of the Popes . Yale University Press, 2014. [Edição Kindle.] SHARP, Lynn L. Secular Spirituality: Reincarnation and Spiritism in Nineteenth-Century France . Lexington Books, 2006.   [Edição Kindle.]

  • Política, ética e Espiritismo

    Por Bruno Lins Quintanilha – 2ª ed. Agosto 2024 - brunolquinta@gmail.com O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação entre política, ética e Espiritismo. Aponto, de antemão, que em minha percepção, esse trinômio é indissociável, ou seja, a doutrina espírita possui um arcabouço ético que, inevitavelmente, tem consequências políticas nos indivíduos e na sociedade. Diria, inclusive, que essa mesma lógica é válida para qualquer religião ou movimento religioso que, até onde concebo, sempre possuirá sua ética própria e suas repercussões políticas. Para começar, penso que é importante definir claramente o que cada palavra ou termo principal que utilizo significa para mim, para que, dessa forma, seja possível estabelecer uma comunicação mais sistematizada, clara e didática. O primeiro termo que quero definir é Espiritismo . O Espiritismo é, ao meu ver, um campo do conhecimento – ainda muito inexplorado –, uma filosofia espiritualista e um estímulo a uma religiosidade livre, aberta e autônoma. Enquanto campo do conhecimento, busca investigar e compreender as relações que se estabelecem entre nós e os Espíritos [1] . Enquanto filosofia espiritualista, o Espiritismo questiona sobre o que está para além do estritamente material, refletindo sobre as consequências da imortalidade da alma e das relações entre os Espíritos e os homens por meio da mediunidade. A partir dos seus conceitos principais (mediunidade, Espírito, Deus, evolução e reencarnação) e de sua ética (pautada no respeito, na empatia, na não violência e no altruísmo) [2] , o Espiritismo pode vir a estimular religiosidade, ou seja, uma conexão do indivíduo com algo superior, mas uma conexão independente de instituições, lugares e regras. O segundo termo relevante a definir é o de ética . O dicionário online Michaelis (2022) aponta uma definição que é simples e didática: “Conjunto de princípios, valores e normas morais e de conduta de um indivíduo ou de grupo social ou de uma sociedade.” Ou seja, sob essa perspectiva, a ética seria como um código de conduta, um conjunto de valores que norteiam nossas opções e ações enquanto indivíduos, grupos ou sociedade. Dessa forma, seria possível falar de uma ética médica, de um conjunto de valores e condutas que seriam imprescindíveis para uma prática médica de excelência. É possível falar de uma ética docente, de uma ética cristã, de uma ética espírita, e assim sucessivamente. Sendo assim, o Espiritismo também possui uma ética que, em minha opinião pessoal, está pautada em 4 valores: respeito, não violência, empatia e altruísmo. Deduzo essa ética espírita a partir de todas as leituras que até então tive a oportunidade de vivenciar no Espiritismo, adotando as obras de Kardec como pilar central – em especial, a 2ª parte do livro “O céu e o inferno”. Dessa maneira, em minha percepção, a pessoa que queira estar em coerência e consonância com a proposta espírita para o indivíduo e para a sociedade precisa ter esses valores que citei anteriormente como norteadores de suas ações. O terceiro termo a definir é o de política . Para mim, de forma muito resumida, eu diria que podemos dividi-la em dois tipos: 1)  A política institucional, ou seja, aquela que em uma democracia é praticada por representantes eleitos periodicamente pelo povo (vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e presidentes) nas mais diversas instâncias oficiais do Estado ou por meio de instituições da sociedade civil como sindicatos, partidos, associações, conselhos, etc. 2)  A política da vida cotidiana, ou seja, meus posicionamentos perante os fatos que acontecem, minhas opiniões acerca dos mais variados assuntos, minhas visões de mundo e minha ação na sociedade. Diria que, no mundo atual, em um Estado democrático, é impossível não estarmos relacionados ou sermos neutros em qualquer uma dessas duas formas de política: (...) em qualquer atividade que se exerça, faz-se política, toma-se posição nesse mundo desigual. Cada um de nós é chamado a se posicionar. Não existe neutralidade. Em tudo que fazemos contribuímos para manter ou transformar a realidade; dominar ou mudar; oprimir ou libertar. (BETTO, 2021, p. 88) Na primeira concepção de política aqui expressa, é impossível a neutralidade porque no contexto de Brasil, todos somos obrigados a votar para eleger nossos representantes na esfera municipal, estadual e federal. E ainda que algum indivíduo opte por não votar ou votar em branco ou nulo, ainda assim, ele está se posicionando politicamente. Na segunda concepção de política também é impossível ser neutro porque todos nós agimos na sociedade, temos visões de mundo, opiniões e posicionamentos acerca dos fatos. Importante observar que, a depender das circunstâncias, mesmo o silêncio ou a inação também não deixam de ser uma espécie de posicionamento político. Feita a apresentação do que entendo como sendo cada um dos termos principais deste artigo, fica a questão: como política, ética e Espiritismo se relacionam? A meu ver, a resposta para isso é simples. Se a política está presente tanto no voto quanto na vida, é forçoso afirmar que todos nós temos valores que nos guiam em nossos votos e em nossas ações e opiniões cotidianas. Ou seja, todos temos, ainda que não percebamos, algum tipo de ética que norteia nossa forma de ver e agir no mundo. Sendo assim, ética e política estão inevitavelmente conectadas. E no caso do espírita, a ética espírita e a política também estão conectadas. A questão é que se adoto a ética espírita e seus valores (respeito, não violência, empatia e altruísmo) na minha vida, isso repercutirá na minha atuação na política institucional, por meio do voto, como também na política da vida, por meio dos meus posicionamentos e ações. Assim também ocorrerá, em minha visão, com o judeu e a ética judaica, o muçulmano e a ética islâmica, o cristão e a ética cristã, um agnóstico ou ateu e a ética que estes adotam para sua vida [3] , etc. Sendo assim, seguir a ética espírita como eu a concebo, inevitavelmente, faz com que nossos votos, posicionamentos e ações cotidianas sejam contra: a)  Qualquer forma de violência e opressão (tortura, racismo, lgbtfobia, xenofobia, machismo, preconceito religioso, fome e miséria, desemprego, brutais desigualdades sociais, corrupção, uso da máquina pública para fins pessoais, etc.). b)  Contra qualquer forma de autoritarismo (ditaduras, ausência de liberdade de pensamento, ausência de liberdade religiosa, ausência de cultura democrática, etc.). c)  Contra qualquer forma de exploração do ser humano. d)  Contra qualquer forma de exploração da natureza (poluições indiscriminadas, caça, destruição dos recursos e patrimônios naturais, maus tratos aos animais, etc.). Aylton Paiva (2014, p. 94) vai apontar que: “é indispensável que, embasado nos princípios espíritas, se trabalhe para remover as causas geradoras da miséria, da ignorância e dos vícios.” Peguemos um exemplo concreto. Jesus é uma figura histórica e religiosa muito relevante para diversas matrizes religiosas e, no Espiritismo, é também encarado como um exemplo e inspiração. Muito embora tenha vivido em um tempo histórico, em um recorte geográfico e em uma cultura muito diferente do Brasil de início do século XXI, ele legou exemplos de conduta e de posicionamentos que são, de certa forma, atemporais. Lendo os evangelhos, no novo testamento, é possível observar que Jesus não tinha envolvimento com a política institucional da época, mas tinha sim forte envolvimento na política da vida, pois sempre se posicionava a favor dos pobres, dos oprimidos, das vítimas da violência e do preconceito, acolhia aqueles que queriam se renovar para o amor e a generosidade. Jesus se posicionava contra o fundamentalismo religioso, contra o uso da religião para oprimir. Não se vê nos textos um Jesus omisso, mas sim um Jesus atuante na política da vida, do cotidiano, um Jesus que defende a mulher que seria apedrejada, um Jesus que acolhia cegos, deficientes, leprosos, que jamais se negava a receber aqueles que sinceramente o procuravam, um Jesus que combatia as injustiças por meio da não violência, um Jesus preocupado com o bem-estar do ser humano, com o amor em seu sentido mais profundo e amplo. Frei Betto, no livro “Espiritualidade, amor e êxtase” propõe que a atuação de Jesus estava centrada em 4 aspectos básicos 1) Soberania da vida 2) O direito dos pobres 3) A partilha 4) O poder como serviço Segundo Frei Betto: Não haverá verdadeira democracia enquanto esses quatro pressupostos não estiverem estruturalmente assegurados para todos: direito de acesso às condições dignas de vida; combate às causas da miséria e da pobreza; partilha dos ‘bens da Terra e dos frutos do trabalho humano’, como se reza à mesa eucarística; e poder como serviço. (BETTO, 2021, p. 57) Junto a isso, julgo também importante apontar algumas observações a respeito da relação entre política e Espiritismo: não acredito numa bancada espírita no legislativo ou em anúncios de candidatos políticos na casa espírita, o que seriam práticas extremamente inadequadas; entretanto, acredito numa casa espírita que acolhe, que cuida, que estimula uma cultura democrática, que tanto quanto possível acompanha a sociedade e a ciência. Num outro lado, também gostaria de observar que não acredito que seja saudável e empático obrigarmos pessoas a se posicionarem sobre algo que elas não queiram ou não se sintam confortáveis para fazê-lo. O respeito ao momento e jeito de cada um também é elemento imprescindível. Da mesma forma como também jamais podemos obrigar uma pessoa a pensar como nós. Podemos discordar, mas precisamos respeitar. Por fim, para concluir, gostaria de apontar que a religião tem inevitavelmente uma dimensão política, pois pode tanto favorecer a manutenção quanto a subversão de determinada ordem social, além de, através da ética que adota e das visões de mundo que estimula influenciar na ação política institucional e cotidiana das pessoas [4] . E que, por fim, o Espiritismo precisa ser um estimulante para a construção de uma sociedade melhor, onde extingamos a violência, a opressão, a exploração, onde nenhuma pessoa passe fome ou tenha que dormir na rua, onde a natureza seja respeitada devidamente e utilizada de forma sustentável. Onde a vida esteja acima do lucro. O Espiritismo precisa estimular e fortalecer a cultura democrática e uma mentalidade preocupada com o coletivo. E a caridade, em minha percepção, precisa passar a ser encarada não apenas como atuar individualmente no auxílio do próximo em trabalhos sociais ou voluntariados, mas também atuar pela melhoria estrutural da sociedade.   Referências BETTO, Frei. Espiritualidade, amor e êxtase. Petrópolis: Vozes, 2021. KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo [tradução da Redação de Reformador  em 1884]. 56. ed. Brasília: FEB, 2013. MICHAELIS. Verbete “ética”. Disponível em: < https://michaelis.uol.com.br/ > Acesso em jul 2022. PAIVA, Aylton. Espiritismo e Política: contribuições para a evolução do ser e da sociedade. 1. ed. Brasília: FEB, 2014. [1] Para identificar o objeto de estudo do Espiritismo na ótica kardequiana, recomendo ler o “preâmbulo” da obra O que é o Espiritismo, de Allan Kardec. [2] Para maiores explicações a respeito dos conceitos e dos valores da ética espírita, recomendo a leitura de minha obra “O que é o Espiritismo? Uma tentativa de resposta para o século XXI”. Caso deseje, solicite-a por e-mail que envio gratuitamente. [3] Importante observar que nem toda ética está necessariamente relacionada a um segmento religioso. Além disso, cabe também observar que dentro de cada segmento religioso é possível que existam disputas internas em torno dos valores que constituiriam a ética daquele segmento. Ou seja, é possível que tenhamos mais de uma ética cristã por exemplo, derivada de grupos cristãos que discordam entre si em algumas questões. [4] Sobre a relação entre política e Espiritismo, indico a leitura do livro “Espiritismo e Política: contribuições para a evolução do ser e da sociedade”, de Aylton Paiva, editado pela FEB.

  • Natureza, cultura, religião e espiritualidade

    Por Bruno Lins Quintanilha Você já se perguntou o que é natureza  e tentou responder de forma simples e direta? Nem sempre é tão rápido ou fácil definir conceitos e palavras e, por vezes, cada pessoa definirá de forma diferente. Para mim, natureza  é tudo aquilo que não foi feito pelo ser humano: sol, água, rios, mares, ar, animais, plantas, solo, a vida. Nada disso têm origem humana. Na verdade, até o próprio ser humano é natureza , pois ele não deu origem a si mesmo. Biologicamente, somos frutos da evolução das espécies, que é um fenômeno natural e, por mais que nos reproduzamos, nós não demos origem a nós mesmos enquanto espécie; logo, também somos natureza . De um outro lado, temos a cultura , que é tudo aquilo que foi feito pelo ser humano. Podemos dividir a cultura  em material e imaterial. São objetos culturais materiais casas, ruas, cidades, roupas, celular, computador, ventilador, máquina de lavar, fogão, etc. E são cultura  imaterial a culinária, a música, o idioma, o carnaval, samba, roda de capoeira, natal, páscoa, etc. Além disso, diria que um dos grandes problemas em relação aos conceitos de natureza  e cultura  ocorre quando os confundimos e tomamos um pelo outro. Vou dar um exemplo. Do ponto de vista da natureza , o homem é superior a mulher? O negro é inferior ao branco? A orientação sexual define superioridade ou inferioridade? A resposta para todas essas perguntas é não . Entretanto, culturalmente, ou seja, a partir de algum momento, em algum lugar, pessoas começaram a pensar e a instituir que haveria hierarquia entre homens, mulheres, negros, brancos, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transsexuais, criando assim, historicamente, o machismo, o racismo, a hoje chamada lgbtfobia e muitos outros tipos de diferenciações artificiais e violentas. O que ocorre, é que ou por ignorância, ou por interesses, ou por mau caratismo e crueldade, ou por tudo isso junto, há pessoas e grupos que acreditam que hierarquia entre homens e mulheres, negros e brancos ou pessoas de orientações sexuais diferentes é algo que sempre existiu, que está na natureza, e não que foram criações perversas e totalmente equivocadas do próprio ser humano. Machismo, racismo, lgbtfobia, enormes desigualdades socioeconômicas, guerras, escravidão, exploração, são todos produtos culturais, criações humanas. Nada disso está na natureza, nada disso é natural. E tudo o que é cultura , pode tanto ser construído quanto desconstruído. Logo, é perfeitamente possível falarmos de uma cultura  de equidade de gênero, de uma cultura  de equidade racial, de uma cultura  de respeito pela diversidade sexual, de uma cultura  de compartilhamento e equidade socioeconômica, de uma cultura  de justiça e paz, de uma cultura  de cooperação - ao invés de exploração. Mas feita essa distinção entre natureza  e cultura , fica uma questão: religião  é cultura  ou natureza ? Ou seja, é ou não é uma criação humana? O fato é que agradando ou não, a resposta é que a religião  é uma criação humana e, portanto, não está na natureza . Catolicismo, protestantismo, islamismo, umbanda e muitas outras têm locais e datas de fundação, ou seja, não existiram desde sempre. E como criações e instituições humanas, as religiões estão sujeitas a todas as contradições da humanidade: elas mesclam luzes e sombras, virtudes e lacunas, contribuições e prejuízos; podem auxiliar na libertação do ser humano, na construção de sua autonomia, mas também podem escravizá-lo; podem contribuir para um mundo mais justo, pacífico, fraterno, mas também podem estimular preconceitos, estereótipos, visões distorcidas e até mesmo violência. Podem mesmo auxiliar em alguns pontos e prejudicar em outros simultaneamente. Logo, sendo a religião  um elemento da cultura , proveniente do ser humano, ela precisa ser encarada de forma crítica também. Os livros chamados de sagrados foram escritos e organizados por mãos humanas, e todo ser humano é limitado. Essas obras podem conter muitos ensinos, histórias e reflexões úteis, inspiradoras, belas, mas também contém elementos e ideias que são de outro contexto histórico, social, cultural e que na atualidade podem mesmo ser absurdos. Logo, é preciso filtrar o humano e aproveitar o que for realmente superior e útil. Para isso, é necessária uma crítica saudável e madura. E, para além disso, uma cultura de diálogo, abertura e não dogmatismo. Num contraponto a religião , temos a espiritualidade . Para mim, espiritualidade seria qualquer sensação ou percepção no ser humano que transcende, de alguma forma, o estritamente material e fisiológico. Por exemplo: uma pessoa está em uma praça cheia de natureza e tranquilidade e, fechando seus olhos, ouve o canto dos pássaros e sente o vento suave que desliza sobre sua pele; nesse estado de relaxamento e contemplação é tomado por uma profunda sensação de conexão com toda a vida ali presente, é envolvido por uma alegria e sensação de bem-estar profundas. Neste momento, essa pessoa estaria vivenciando um momento de transcendência do material, ou, com outras palavras, um momento de espiritualidade . É possível dar outros exemplos: andar por um museu e deparar-se com uma obra de arte que te emociona, arrepia e sensibiliza; ter momentos de trocas intelectuais, debates e reflexões que te empolgam e inspiram; abraçar alguém que ama e sentir uma sensação de paz e alegria que não é possível descrever em palavras; observar o pôr do sol e ser tomado por um sentimento de admiração pela beleza e grandiosidade da natureza; receber o carinho de pessoas queridas durante seu aniversário e sentir com isso uma profunda gratidão pela vida e pelos afetos; orar com fé e sentir um tipo de conexão, amparo e conforto. Todas essas sensações ou percepções que ultrapassam a barreira do estritamente material são, no que estamos desenvolvendo aqui, momentos de espiritualidade . Para ficarmos com um exemplo da cristandade, Jesus, segundo é possível observar no Novo Testamento, vivencia a espiritualidade independentemente de lugares, pessoas ou situações específicas. Pela vivência do amor em seu sentido mais profundo, do acolhimento aos que sofrem, da escuta aos necessitados, do contato com a natureza e com o povo, das orações, dos momentos em que ensinava junto ao povo ou simplesmente convivia com seus amigos, ele provavelmente vivenciava, com frequência, essas sensações de transcendência da matéria. Dessa forma, a espiritualidade  de Jesus não estaria restrita somente à religião institucionalizada  ou a templos religiosos , mas se estenderia por qualquer situação cotidiana da vida. Nessa perspectiva, é possível inclusive não professar nenhuma religião  e ainda assim ser pleno de espiritualidade . Não é difícil encontramos exemplos de religiosos sem espiritualidade  e de pessoas que não tem qualquer vínculo religioso, mas são cheias de espiritualidade . Sendo assim, se a religião  é cultura , logo obra humana, a espiritualidade  me parece ser algo inerente ao próprio ser humano e, portanto, talvez mais vinculada a natureza que a cultura . Dessa forma, a espiritualidad e seria um elemento da naturez a no ser humano. Para encerrar, gostaria de citar um trecho do livro “O amor como revolução” do Pastor Henrique Vieira, pessoa que admiro muito em sua espiritualidade cheia de humanidade, abertura e sem dogmatismos: Espiritualidade é abertura, fundamentalismo é fechamento. Espiritualidade se move nas perguntas, fundamentalismo, em certezas irretocáveis. Espiritualidade é experiência e contemplação, fundamentalismo é doutrina. Espiritualidade se move no amor e na liberdade, fundamentalismo, na culpa e no medo. Espiritualidade transita nas diferenças e percebe a diversidade como expressão sagrada, fundamentalismo vê a diversidade como maldição. Portanto, a experiência religiosa é saudável quando alimenta a espiritualidade sem sufocá-la. (VIEIRA, 2019, p. 65) Por mais espiritualidade  livre e aberta e menos religião  dogmática e sectária. Deixo com vocês meus desejos de muita saúde, inspiração e paz   REFERÊNCIAS VIEIRA, Henrique. O Amor como Revolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.

  • Humanizando o Espiritismo e as pessoas: por um olhar crítico e fraterno

    O Espiritismo contou com grandes mentes e corações para que pudesse ser construído através de muita pesquisa, trabalho, reflexão e mesmo abnegação. É grande a lista de figuras públicas que, ao longo dos últimos um século e meio, se destacaram e, consequentemente, se tornaram inspiração intelectual ou ética dentro do movimento espírita. Isso é natural em qualquer movimento filosófico, religioso ou social. Entretanto, muitas vezes, em um gesto até certo ponto muito comum à humanidade, a admiração frequentemente se transforma em adoração, em mitificação, o que por sua vez considero bastante ruim e até mesmo perigoso, pois desumaniza aqueles que se destacam ou se tornam figuras públicas, podendo estimular a adoção de posturas acríticas perante estes. Jamais podemos perder de vista a noção espírita de evolução[1]. Todas e todos que estão encarnados na Terra estão em processo de evolução, ou seja, de amadurecimento intelecto-moral na direção da sabedoria, da sensibilização e de valores como o respeito, a não violência, a empatia, o altruísmo. Sendo assim, não se pode esquecer que mesmo grandes vultos do Espiritismo do passado ou do presente são seres em evolução, pessoas que podem ser brilhantes intelectualmente em algumas áreas, destacadas do ponto de vista ético, abnegadas em suas tarefas, mas ainda assim seres humanos, que podem se equivocar, que ignoram determinadas informações ou conhecimentos, que podem sentir insegurança, impaciência, medo, raiva, tristeza. Penso que lançar esse olhar humanizante é não só saudável, mas mesmo fundamental para uma noção mais ampla e profunda do Espiritismo e da vida. Todo ser humano é limitado pelo tempo, pelo lugar, pela cultura e sociedade onde nasceu. É justamente por isso que, na perspectiva espírita, precisamos reencarnar, pois assim experimentamos múltiplas experiências e, dessa forma, expandimos nossa capacidade de pensar e de sentir. Jamais podemos abrir mão de pensar criticamente. Entretanto, é também relevante expor o que aqui entendo por crítica e pensamento crítico. Quando é mencionado o termo crítica, tenho a impressão de que em boa parte das pessoas ele soa de forma negativa. Muitos parecem interpretar a crítica como sendo falar mal de alguém, de alguma ideia ou de algo. Entretanto, é justo apontar que a crítica vai muito além disso. Avalio que, antes de tudo, a crítica é, por exemplo, uma avaliação sobre alguma ideia. Nossa avaliação sobre algo pode ser positiva como também pode ser negativa, como também pode concordar com alguns pontos e discordar de outros. E o mais importante: posso criticar determinada ideia sem necessariamente odiar ou marginalizar a pessoa que a emitiu. Posso criticar uma ideia e ser profundamente amigo de quem a formulou, mas, justamente por querer ver o melhor da pessoa a quem estimo, dou a minha avaliação/crítica sobre o que ela pensa com o intuito de contribuir ou melhorar o máximo possível suas ideias. Acredito que precisamos mais dessa perspectiva intelectual de crítica, passando a enxergá-la como algo muito positivo, desde que bem intencionada, educada, respeitosa, fraterna e empática. Uma ideia ou pessoa que nunca é questionada tem fortes chances de ser extremamente frágil. A crítica, quando equilibrada e respeitosa, aprimora e refina as ideias. Basta recorrermos ao esquema dialético, onde temos uma ideia A (tese) e uma ideia B (antítese) e, a partir do choque, do embate entre essas ideias, teremos uma ideia C (uma síntese, uma nova ideia ou perspectiva). Muitas vezes, quando somos confrontados por um novo ponto de vista de alguém, acabamos pensando diferente, podemos até mesmo mudar nossas conclusões e ideias ou simplesmente fortalecer um pouco mais o que já pensávamos. Dessa forma, a crítica equilibrada às ideias pode ser muito saudável e importante para o amadurecimento pessoal, coletivo ou institucional. O próprio Kardec não se nega ao debate, à troca, à crítica de ideias. Na introdução da Revista Espírita de janeiro de 1858 ele escreve o seguinte: “Nossa Revista será, assim, uma tribuna livre, em que a discussão jamais se afastará das normas da mais estrita conveniência. Numa palavra: discutiremos, mas não disputaremos.” (KARDEC, sem data, p. 24) Nesse periódico, ao longo de vários anos, Kardec deu vários exemplos dessa crítica sadia, sustentando debates, experimentando ideias, trocando, ouvindo, dialogando, elaborando e reelaborando. Fazendo alusão à importância da avaliação racional e crítica, o Espírito Erasto, no item 230 de O Livro dos Médiuns escreve o seguinte em determinado trecho: Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossos olhos, de manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem. Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea. (KARDEC, 2013, p. 246) Essa era a postura de abertura e de debate que vigorava no Espiritismo nascente e que acredito mesmo ter sido fundamental para a sobrevivência e continuidade da doutrina. Nessa perspectiva, afirmo com tranquilidade que absolutamente todo autor(a), médium, Espírito, tem que ser lido de forma crítica. O que não nos agrada, não devemos aceitar de forma passiva, mas sim criticar, raciocinar, conversar com outras pessoas – sem jamais se esquecer do princípio da caridade. Isso é fundamental. E essa era uma postura que figuras como Allan Kardec ou Léon Denis sempre tiveram. Corrobora esse pensamento a frase que está inscrita na folha de rosto de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.” (KARDEC, 2013, sem página). Além do mais, o próprio Kardec aponta, em A Gênese, esse caráter dinâmico e aberto do Espiritismo, que só é possível quando há esse ambiente de abertura e crítica sadia: Entendendo-se com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, (...) Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. (KARDEC, 2013, p. 41-42) É importante apontar que outro possível efeito da desumanização dos grandes vultos do Espiritismo é que podemos vir a criar pressão desproporcional sobre as pessoas, como se todos tivessem que agir exatamente igual aos nomes que se destacaram publicamente. Isso pode vir a criar, inconscientemente, padrões que não conseguimos atingir e que, por sua vez, podem ser geradores de culpa e desânimo. Nesse sentido, acredito que um olhar humanizante para essas figuras pode nos aproximar delas, motivando-nos e fortalecendo-nos. Sobre esse ponto, há uma citação do Pastor Henrique Vieira em que ele escreve o seguinte: O exercício do amor não significa que nos tornaremos seres ideais, com pensamentos puros e atitudes boas o tempo inteiro. É ingenuidade pensar assim, e é perigoso também, porque estabelece uma demanda da qual ninguém dá conta, e, da frustração, nascem a culpa e a permanente insatisfação. O amor não nos maquiniza ou programa para ações sempre ajustadas e perfeitas. Ele não nos imuniza dos conflitos, não nos faz pairar sobre a história. Continuamos sendo precários, finitos, contraditórios e vulcânicos em nossos sentimentos e ações. Qualquer visão que exclua essa realidade tende a pesar demais. Somos demasiada e fantasticamente humanos, e o amor não suprime ou supera essas tensões de nossa existência. Há dias que são ruins, em que estamos mais estressados e intolerantes, que não conseguimos agir de maneira mais justa e adequada. (VIEIRA, 2019, p. 42) Ainda no mesmo sentido, o médico e espírita brasileiro Sergio Lopes acrescenta: Muita gente confunde crescimento espiritual com sacrifícios penosos, ou mesmo sofrimentos voluntários que, muitas das vezes, se dão mais porque a própria pessoa não procura recursos. Há pessoas, bem intencionadas, diga-se de passagem, mas que resolveram virar santos rapidamente. Querem alcançar uma evolução impossível da noite para o dia. No entanto, o que a humanidade está precisando não é de indivíduos super-humanos, mas de seres humanos apenas. Pessoas capazes de serem melhores no seu dia a dia, indivíduos comuns, sem afetação, mas com o propósito de uma vida mais ética. (LOPES, 2007, p. 86) Além disso, a mitificação de indivíduos também pode vir a ser uma grande geradora de decepções, porque se coloco todas as fichas de confiança e fé num palestrante e mais cedo ou mais tarde este comete algum equívoco – o que até certo ponto é natural, pois é um ser em evolução –, posso vir a me decepcionar com o Espiritismo por achar que aquela pessoa era o Espiritismo. Ter referências é importante, mas é também necessário nos apegarmos com ideias e ideais, e não apenas com pessoas, que são todas falíveis em certa medida no estado atual da Terra. Por fim, a mitificação de nomes e indivíduos gera muita pressão sobre os próprios autores, autoras, médiuns, palestrantes, aumentando ainda mais seus desafios e tribulações, além de estimular-lhes, inconscientemente, orgulho, vaidade. Nessa perspectiva, a mitificação seria ainda uma falta de caridade[2]. Que possamos nos relacionar com o Espiritismo de forma aberta, dialógica, generosa, e que este possa ser uma ferramenta para nos estimular um olhar humanizante, acolhedor, crítico e fraterno ao mesmo tempo, a exemplo do que Kardec fez durante sua trajetória de pesquisa e sistematização da doutrina. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KARDEC, Allan. A Gênese [tradução de Guillon Ribeiro da 5a ed. francesa]. 53. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo [tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866]. 131. ed. 2. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013. KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, ou, guia dos médiuns e dos evocadores: Espiritismo experimental [tradução de Guillon Ribeiro a partir da 49a edição francesa de 1861]. 81. ed. 1. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013. KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos 1858 [tradução de Evandro Noleto Bezerra]. Brasília: Federação Espírita Brasileira. Disponível em: https://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1858.pdf Acesso em 26 jan 2022. LOPES, Sergio Luis da Silva. Leis Morais e Saúde Mental: Um Estudo da Terceira Parte de O Livro dos Espíritos. 7. ed. Porto Alegre: Francisco Spinelli, 2007. SOLER, Amália Domingo. Memórias do Padre Germano. 14. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1980. VIEIRA, Henrique. O Amor como Revolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019. [1] Ver O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, em sua Parte Terceira, capítulo VIII, intitulado “Da lei do progresso”. [2] Recomendo aqui a leitura da obra Memórias do Padre Germano, editada pela FEB, e de autoria de Amália Domingo Soler. Neste livro, o personagem principal – Germano – dá variados exemplos de uma postura humanizante.

  • Política, ética e Espiritismo

    por Bruno Quintanilha O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação entre política, ética e Espiritismo. Aponto, de antemão, que em minha percepção, esse trinômio é indissociável, ou seja, a doutrina espírita possui um arcabouço ético que, inevitavelmente, tem consequências políticas nos indivíduos e na sociedade. Diria, inclusive, que essa mesma lógica é válida para qualquer religião ou movimento religioso que, até onde concebo, sempre possuirá sua ética própria e suas repercussões políticas. Para começar, penso que é importante definir claramente o que cada palavra ou termo principal que utilizo significa para mim, para que, dessa forma, seja possível estabelecer uma comunicação mais sistematizada, clara e didática. O primeiro termo que quero definir é Espiritismo. O Espiritismo é, ao meu ver, um campo do conhecimento – ainda muito inexplorado –, uma filosofia espiritualista e um estímulo a uma religiosidade livre, aberta e autônoma. Enquanto campo do conhecimento, busca investigar e compreender as relações que se estabelecem entre nós e os Espíritos[1]. Enquanto filosofia espiritualista, o Espiritismo questiona sobre o que está para além do estritamente material, refletindo sobre as consequências da imortalidade da alma e das relações entre os Espíritos e os homens por meio da mediunidade. A partir dos seus conceitos principais (mediunidade, Espírito, Deus, evolução e reencarnação) e de sua ética (pautada no respeito, na empatia, na não violência e no altruísmo), o Espiritismo pode vir a estimular religiosidade, ou seja, uma conexão do indivíduo com algo superior, mas uma conexão independente de instituições, lugares e regras. O segundo termo relevante a definir é o de ética. O dicionário online Michaelis (2022) aponta uma definição que é simples e didática: “Conjunto de princípios, valores e normas morais e de conduta de um indivíduo ou de grupo social ou de uma sociedade.” Ou seja, sob essa perspectiva, a ética seria como um código de conduta, um conjunto de valores que norteiam nossas opções e ações enquanto indivíduos, grupos ou sociedade. Dessa forma, seria possível falar de uma ética médica, de um conjunto de valores e condutas que seriam imprescindíveis para uma prática médica de excelência. É possível falar de uma ética docente, de uma ética cristã, de uma ética espírita, e assim sucessivamente. Sendo assim, o Espiritismo também possui uma ética que, em minha opinião pessoal, está pautada em 4 valores: respeito, não violência, empatia e altruísmo. Deduzo essa ética espírita a partir de todas as leituras que até então tive a oportunidade de vivenciar no Espiritismo, adotando as obras de Kardec como pilar central – em especial, a 2ª parte do livro “O céu e o inferno”. Dessa maneira, em minha percepção, a pessoa que queira estar em coerência e consonância com a proposta espírita para o indivíduo e para a sociedade precisa ter esses valores que citei anteriormente como norteadores de suas ações. O terceiro termo a definir é o de política. Para mim, de forma muito resumida, eu diria que podemos dividi-la em dois tipos: 1) A política institucional, ou seja, aquela que em uma democracia é praticada por representantes eleitos periodicamente pelo povo (vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e presidentes) nas mais diversas instâncias oficiais do Estado. 2) A política da vida cotidiana, ou seja, meus posicionamentos perante os fatos que acontecem, minhas opiniões acerca dos mais variados assuntos, minhas visões de mundo e minha ação na sociedade. Diria que, no mundo atual, em um Estado democrático, é impossível não estarmos relacionados ou sermos neutros em qualquer uma dessas duas formas de política: (...) em qualquer atividade que se exerça, faz-se política, toma-se posição nesse mundo desigual. Cada um de nós é chamado a se posicionar. Não existe neutralidade. Em tudo que fazemos contribuímos para manter ou transformar a realidade; dominar ou mudar; oprimir ou libertar. (BETTO, 2021, p. 88) Na primeira concepção de política aqui expressa, é impossível a neutralidade porque no contexto de Brasil, todos somos obrigados a votar para eleger nossos representantes na esfera municipal, estadual e federal. E ainda que algum indivíduo opte por não votar ou votar em branco ou nulo, ainda assim, ele está se posicionando politicamente. Na segunda concepção de política também é impossível ser neutro porque todos nós agimos na sociedade, temos visões de mundo, opiniões e posicionamentos acerca dos fatos. Importante observar que, a depender das circunstâncias, mesmo o silêncio ou a inação também não deixam de ser uma espécie de posicionamento político. Feita a apresentação do que entendo como sendo cada um dos termos principais deste artigo, fica a questão: como política, ética e Espiritismo se relacionam? Ao meu ver, a resposta para isso é simples. Se a política está presente tanto no voto quanto na vida, é forçoso afirmar que todos nós temos valores que nos guiam em nossos votos e em nossas ações e opiniões cotidianas. Ou seja, todos temos, ainda que não percebamos, algum tipo de ética que norteia nossa forma de ver e agir no mundo. Sendo assim, ética e política estão inevitavelmente conectadas. E no caso do espírita, a ética espírita e a política também estão conectadas. A questão é que se adoto a ética espírita e seus valores (respeito, não violência, empatia e altruísmo) na minha vida, isso repercutirá na minha atuação na política institucional, por meio do voto, como também na política da vida, por meio dos meus posicionamentos e ações. Assim também ocorrerá, em minha visão, com o judeu e a ética judaica, o muçulmano e a ética islâmica, o cristão e a ética cristã, um agnóstico ou ateu e a ética que estes adotam para sua vida[2], etc. Sendo assim, seguir a ética espírita como eu a concebo, inevitavelmente, faz com que nossos votos, posicionamentos e ações cotidianas sejam contra: a) Qualquer forma de violência e opressão (tortura, racismo, lgbtfobia, xenofobia, machismo, preconceito religioso, fome e miséria, desemprego, brutais desigualdades sociais, corrupção, uso da máquina pública para fins pessoais, etc.). b) Contra qualquer forma de autoritarismo (ditaduras, ausência de liberdade de pensamento, ausência de liberdade religiosa, ausência de cultura democrática, etc.). c) Contra qualquer forma de exploração do ser humano. d) Contra qualquer forma de exploração da natureza (poluições indiscriminadas, caça, destruição dos recursos e patrimônios naturais, maus tratos aos animais, etc.). Aylton Paiva (2014, p. 94) vai apontar que “é indispensável que, embasado nos princípios espíritas, se trabalhe para remover as causas geradoras da miséria, da ignorância e dos vícios.” Peguemos um exemplo concreto. Jesus é uma figura histórica e religiosa muito relevante para diversas matrizes religiosas e, no Espiritismo, é também encarado como um exemplo e inspiração. Muito embora tenha vivido em um tempo histórico, em um recorte geográfico e em uma cultura muito diferente do Brasil de início do século XXI, ele legou exemplos de conduta e de posicionamentos que são, de certa forma, atemporais. Lendo os evangelhos, no novo testamento, é possível observar que Jesus não tinha envolvimento com a política institucional da época, mas tinha sim forte envolvimento na política da vida, pois sempre se posicionava a favor dos pobres, dos oprimidos, das vítimas da violência e do preconceito, acolhia aqueles que queriam se renovar para o amor e a generosidade. Jesus se posicionava contra o fundamentalismo religioso, contra o uso da religião para oprimir. Não se vê nos textos um Jesus omisso, mas sim um Jesus atuante na política da vida, do cotidiano, um Jesus que defende a mulher que seria apedrejada, um Jesus que acolhia cegos, deficientes, leprosos, que jamais julgava, um Jesus que combatia as injustiças por meio da não violência, um Jesus preocupado com o bem estar do ser humano, com o amor em seu sentido mais profundo e amplo. Frei Betto, no livro “Espiritualidade, amor e êxtase” propõe que a atuação de Jesus estava centrada em 4 aspectos básicos 1) Soberania da vida 2) O direito dos pobres 3) A partilha 4) O poder como serviço Segundo Frei Betto: Não haverá verdadeira democracia enquanto esses quatro pressupostos não estiverem estruturalmente assegurados para todos: direito de acesso às condições dignas de vida; combate às causas da miséria e da pobreza; partilha dos ‘bens da Terra e dos frutos do trabalho humano’, como se reza à mesa eucarística; e poder como serviço. (BETTO, 2021, p. 57) Junto a isso, julgo também importante apontar algumas observações a respeito da relação entre política e Espiritismo: não acredito numa bancada espírita no legislativo ou em anúncios de candidatos políticos na casa espírita, o que seriam práticas extremamente inadequadas; entretanto, acredito numa casa espírita que acolhe, que cuida, que estimula uma cultura democrática, que tanto quanto possível acompanha a sociedade e a ciência. Num outro lado, também gostaria de observar que não acredito que seja saudável e empático obrigarmos pessoas a se posicionarem sobre algo que elas não queiram ou não se sintam confortáveis para fazê-lo. O respeito ao momento e jeito de cada um também é elemento imprescindível. Da mesma forma como também jamais podemos obrigar uma pessoa a pensar como nós. Podemos discordar, mas precisamos respeitar. Por fim, para concluir, gostaria de apontar que a religião tem inevitavelmente uma dimensão política, pois pode tanto favorecer a manutenção quanto a subversão de determinada ordem social, além de, através da ética que adota e das visões de mundo que estimula influenciar na ação política institucional e cotidiana das pessoas[3]. E que, por fim, o Espiritismo precisa ser um estimulante para a construção de uma sociedade melhor, onde extingamos a violência, a opressão, a exploração, onde nenhuma pessoa passe fome ou tenha que dormir na rua, onde a natureza seja respeitada devidamente e utilizada de forma sustentável. Onde a vida esteja acima do lucro. O Espiritismo precisa estimular e fortalecer a cultura democrática e uma mentalidade preocupada com o coletivo. E a caridade, em minha percepção, precisa passar a ser encarada não apenas como atuar individualmente no auxílio do próximo em trabalhos sociais ou voluntariados, mas também atuar pela melhoria estrutural da sociedade. REFERÊNCIAS BETTO, Frei. Espiritualidade, amor e êxtase. Petrópolis: Vozes, 2021. KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo [tradução da Redação de Reformador em 1884]. 56. ed. Brasília: FEB, 2013. MICHAELIS. Verbete “ética”. Disponível em: < https://michaelis.uol.com.br/> Acesso em jul 2022. PAIVA, Aylton. Espiritismo e Política: contribuições para a evolução do ser e da sociedade. 1. ed. Brasília: FEB, 2014. [1] Para identificar o objeto de estudo do Espiritismo na ótica kardequiana, recomendo ler o “preâmbulo” da obra O que é o Espiritismo, de Allan Kardec. [2] Importante observar que nem toda ética está necessariamente relacionada a um segmento religioso. Além disso, cabe também observar que dentro de cada segmento religioso é possível que existam disputas internas em torno dos valores que constituiriam a ética daquele segmento. Ou seja, é possível que tenhamos mais de uma ética cristã por exemplo, derivada de grupos cristãos que discordam entre si em algumas questões. [3]Sobre a relação entre política e Espiritismo, indico a leitura do livro “Espiritismo e Política: contribuições para a evolução do ser e da sociedade”, de Aylton Paiva, editado pela FEB.

  • Espiritismo e questões LGBTQIAP+

    por Renata Strino Há muitas formas de ser e viver no mundo. A diversidade faz parte da vida e nos enriquece enquanto indivíduos e grupos. No entanto, a sociedade muitas vezes impõe padrões que limitam essa diversidade. Na cultura cristã ocidental, por exemplo, valoriza-se a atração afetiva e sexual por pessoas do gênero oposto (heterossexualidade) e a identificação e expressão de gênero de acordo com o sexo biológico (cisgeneridade), padrão que considera a existência apenas de dois gêneros, o feminino e o masculino, o que chamamos de binaridade de gênero. Essa valorização e imposição do padrão heterossexual e cisgênero chamamos de heterocisnormatividade. Mas tudo o que nos limita nos adoece, física e psiquicamente, podendo gerar preconceito, violência e morte. Se o considerado bom e certo é ser heterossexual e cisgênero, quem não segue esse padrão é julgado como errado, ruim, imoral, como se nossa sexualidade e gênero definissem nosso caráter e pudéssemos escolher mudá-los. É impossível mudar a sexualidade, nós já nascemos quem somos, e ela não define caráter. Mas isso nós sabemos hoje. Nem sempre foi assim. A homossexualidade já foi considerada doença pelas ciências da saúde e aqui temos algumas datas importantes, de acordo com nota do Conselho Federal de Psicologia (2009): Em 1973 a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da lista de doenças psiquiátricas, entendendo-a como uma variante normal do comportamento humano. Em 1975 foi a vez da Associação Americana de Psicologia e em 1985, do Conselho Federal Brasileiro de Psicologia. Finalmente em 17 de maio de 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade, e em junho de 2018 a transexualidade, da Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID). Em 1991, a Anistia Internacional passou a considerar a discriminação contra a homossexualidade como violação aos direitos humanos. Existem infinitas possibilidades de ser que transgridem à heterocisnormatividade, que hoje a ciência já entende como variantes normais. Entendemos, também, que tentar “curar” ou “reverter” a sexualidade de alguém, impedir a pessoa de ser quem ela é, proibi-la de amar e de ser autêntica é atentar gravemente contra sua saúde mental, tornando-a suscetível a transtornos como de ansiedade, depressão e até mesmo suicídio. É importante ressaltar, inclusive, que psicólogos que fazem terapia de reversão sexual (conhecida popularmente como Cura Gay) hoje devem ser denunciados ao Conselho Federal de Psicologia. Não há cura para o que não é doença. O que precisa ser curado é o preconceito e o primeiro passo para a cura é aprender. As variantes do comportamento humano que fogem ao padrão cisheteronormativo são tão vastas e ricas que talvez seja arrogante acreditar que conhecemos todas. Algumas delas, no entanto, são conhecidas, possuem nomes e estão representadas nessa sigla: LGBTQIAP+. L = lésbica G = gay B = bissexual T = transgênero, transexual, travesti Q = queer I = intersexo A = assexual P = pansexual + = outras possibilidades Mais adiante vamos entender cada uma, mas antes é interessante ressaltar que a sigla nem sempre foi essa. Até meados do século XIX, as relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram consideradas um pecado que qualquer pessoa poderia cometer se a ele sucumbisse (sodomia). Foi somente a partir da segunda metade do século XIX que a pessoa homossexual foi compreendida como um “tipo” de indivíduo, que por essa característica seria marcado e segregado, considerado um desvio da norma. Tudo girava em torno da questão moral: enquanto alguns grupos consideravam a homossexualidade uma anormalidade, sendo a pessoa homossexual inferior às heterossexuais, outros grupos defendiam seu caráter natural, mas o movimento era ainda pequeno e seus grupos, clandestinos. (LOURO, 2001) Foi então que o dia 28 de junho de 1969 entrou para a história. Em Nova York, nos Estados Unidos, bares gays eram frequentemente locais de batidas policiais – clientes e funcionários eram ameaçados, espancados e presos. Nessa época, havia leis na maioria dos municípios dos Estados Unidos que criminalizavam a homossexualidade, além de negar direitos básicos. Neste dia, no entanto, no bar Stonewall Inn, os clientes reagiram gerando uma rebelião que durou alguns dias e ficou conhecida como Revolta de Stonewall. As protagonistas dessa resistência foram mulheres pretas transgêneros, travestis e drag queens, sendo o nome mais conhecido o da Marsha P. Johnson. É interessante ressaltar que o bar era frequentado pelas pessoas mais marginalizadas da comunidade, incluindo pessoas em situação de rua e até mesmo menores de idade. Atualmente a data de 28 de junho ficou conhecida como o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+ e o mês de junho é celebrado como o Mês do Orgulho em várias partes do mundo (mas na época essa ainda não era a sigla, mais adiante vamos chegar nela). A partir de então, a luta da comunidade por direitos e contra o preconceito começou a ganhar mais força. (BLAKEMORE, 2021) Pensando em termos de Brasil, foi em 1970 que a homossexualidade começou a aparecer mais nas artes e publicidades. No ano de 1975 surgiu o Movimento de Libertação Homossexual no Brasil, contando com a participação de intelectuais que foram exilados durante a ditadura militar e quando de volta ao país trouxeram as inquietações políticas sexuais, feministas, raciais e ecológicas vivenciadas por eles durante o exílio – agregou-se, assim, às lutas e debates sobre homossexualidade novas dimensões (de gênero, classe, etnia, nacionalidade, etc). (LOURO, 2001) Na década de 1980, o surgimento da AIDS, apresentada como o “câncer gay”, aumentou a homofobia, intensificando a discriminação, a intolerância, o desprezo de parte da sociedade. Aumentou também, no entanto, o número de grupos ativistas, fortalecendo os movimentos (LOURO, 2001), agora identificados pela sigla GLS: gays, lésbicas e simpatizantes. Nos anos 1990, houve a inclusão de bissexuais e pessoas transgênero, ficando GLBT. Posteriormente o L de lésbicas passou a ser a primeira letra, trocando de lugar com o G, enfatizando a dimensão da questão de gênero que atravessa a luta da comunidade. Ficou, então, na época a sigla LGBT. Com o passar do tempo ela vem aumentando, mais grupos vão sendo incluídos buscando trazer cada vez mais compreensão e representatividade. Para entendermos melhor, vamos ao significado de cada uma das letras da atual sigla LGBTQIAP+: L = LÉSBICAS Mulheres que se atraem afetiva e/ou sexualmente por mulheres, ou seja, mulheres que se atraem pelo mesmo gênero, que são homossexuais. G = GAYS Homens que se atraem afetiva e/ou sexualmente por homens, ou seja, homens que se atraem pelo mesmo gênero, que são homossexuais. B = BISSEXUAIS Pessoas que se atraem afetiva e/ou sexualmente por mais de um gênero. Alguns acreditam que as pessoas bissexuais se atraem somente por mulheres e homens, seguindo uma lógica de pensamento binária. No entanto, pessoas bissexuais podem se atrair por mulheres, homens e por qualquer outra identidade de gênero. Existe uma crença falsa de que pessoas bissexuais, por se atraírem por mais de um gênero, são promíscuas, indecisas e mais propensas, por isso, a traições. Essa crença é um absurdo, fruto de ignorância e preconceito. T = TRANSGÊNEROS, TRANSEXUAIS, TRAVESTIS A transgeneridade é a condição na qual a identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquela atribuída ao gênero designado no nascimento, que geralmente é baseado no sexo biológico. É diferente da cisgeneridade, citada anteriormente. Observações: TRANSEXUAL: É a pessoa que não se identifica com o gênero atribuído de acordo com seu sexo biológico e passa a se identificar como se sente melhor, mais autenticamente. Nesse caso, há uma transição social que pode incluir ou não tratamentos hormonais ou cirúrgicos. Então, pelo que vimos até agora, entendemos que: Cisgeneridade: gênero em concordância com o sexo biológico. Transgeneridade: gênero em discordância do sexo biológico. Uma pessoa que nasce com sexo biológico feminino e se reconhece e se expressa no mundo como mulher = é uma mulher cis. Uma pessoa que nasce com sexo biológico masculino e se reconhece e se expressa no mundo como homem = é um homem cis. Uma pessoa que nasce com sexo biológico feminino e se reconhece e se expressa no mundo como uma pessoa masculina = é um homem trans ou pessoa transmasculina. Uma pessoa que nasce com sexo biológico masculino e se reconhece e se expressa no mundo como uma pessoa feminina = é uma mulher trans ou pessoa transfeminina. Uma pessoa que nasce seja com o sexo biológico feminino, seja com o masculino, mas não se reconhece apenas como um ou como outro é uma pessoa não binária (que pode incluir identidades como gênero fluido, agênero, etc). Pessoas não binárias podem se sentir melhor ao serem referenciadas não com os pronomes femininos (ela/dela) ou masculinos (ele/dele), de acordo com nossa língua portuguesa, mas com os pronomes neutros (elu/delu). Você pode (e deve) perguntar para a pessoa quais sãos os pronomes dela, como ela gosta de ser chamada. Não tem problema nenhum, pelo contrário, mostra respeito e consideração. Mais recentemente, muitas pessoas já vêm representando a não binaridade de gênero com a letra N na sigla: LGBTQIAPN+. TRAVESTI: É necessariamente uma pessoa que nasceu com o sexo biológico masculino, mas se identifica como uma pessoa feminina e usa os pronomes ela/dela. O termo travesti, que antes era utilizado de forma pejorativa, vem sendo ressignificado, possui uma história e uma marca social importante e passou a ter mais peso político. (TRANSCENDEMOS, sem data) Q = QUEER Queer é um termo que não tem tradução exata no português, mas pode ser entendido como “estranho”, “peculiar”, “extraordinário” e é usado para identificar pessoas que estão fora dos padrões de sexualidade e gênero impostos pela nossa sociedade, ou seja, fora da cisheteronormatividade. No século XIX, queer era um termo usado pejorativamente, de forma ofensiva, para se referir a pessoas homossexuais, mas seu sentido foi ressignificado por ativistas nos anos 1980, enfatizando sua perspectiva de contestação da heteronormatividade compulsória da sociedade. Nos anos 1990, um grupo de intelectuais passa a usar o termo queer para identificar sua perspectiva teórica, que problematiza as noções de sujeito e identidade, como por exemplo Michel Foucault, cujas construções discursivas serviram de base para o surgimento da Teoria Queer. A Teoria Queer afirma que a identidade de gênero é resultado de uma construção social, e não de uma funcionalidade biológica, e tem como destaque a teórica Judith Butler. (LOURO, 2001) Atualmente o termo queer é usado de forma positiva, com o intuito político de dar visibilidade a quem está fora dos padrões impostos. O termo queer é mais comumente utilizado fora do Brasil. I = INTERSEXO São pessoas que nascem com genitália ambígua, ou seja, com conformação dos sexos biológicos feminino e masculino ou com genitália de um e tecido gonadal de outro. Os intersexos não são um gênero, e sim uma classificação, fruto de uma anomalia biológica. No entanto, é importante ressaltar que por anomalia dizemos sobre algo diferente do que acontece comumente com as pessoas. Não há nenhum valor negativo ou pejorativo. Em muitos casos são realizadas cirurgias e um gênero é escolhido por médicos e familiares. No entanto, com o tempo e seu desenvolvimento, a pessoa pode se identificar com um gênero diferente do escolhido na cirurgia, podendo gerar conflitos psicológicos. A = ASSEXUAIS Pessoas que experimentam nenhuma ou pouca atração sexual. No entanto, isso não significa que ela não pratique sexo, beije, se apaixone em nenhuma circunstância. Ela pode ter atração romântica por outro indivíduo, bem como gostar de toques e ter o desejo de estar em um relacionamento afetivo. Pode também ter atração sexual, porém reduzida e/ou em apenas situações específicas. A assexualidade é compreendida como um amplo espectro (é um termo guarda-chuva) que reúne diversos níveis de ausência de atração sexual e/ou romântica. Exemplos: demissexual, assexual estrito, assexual fluido, grayssexual, etc. A atração romântica é diferente da atração sexual. Atração romântica: desejo de ter um relacionamento amoroso e praticar atos românticos. Atração sexual: ligada à vontade de ter contato sexual com outra(s) pessoa(s). P = PANSEXUAIS Pansexualidade é a atração física, afetiva e/ou sexual independentemente do gênero ou qualquer outra expressão da sexualidade. + = OUTRAS POSSIBILIDADES Por fim, o sinal de mais (+), que há uns anos foi incorporado à sigla, abriga outras possibilidades de orientação sexual e identidade de gênero que existem. Ø Ser uma pessoa cisgênero, transgênero, não binária, gênero fluido, etc é uma coisa: é a identidade de gênero. Ø Ser homossexual, heterossexual, bissexual, pansexual, assexual, etc, é outra coisa: é a orientação sexual. Ø Nascer com órgãos e glândulas sexuais apenas femininas, apenas masculinas ou ser intersexo: é o sexo biológico. Como disse lá no início, as formas de ser e viver no mundo são diversas. Se tem algo que aprendemos na casa espírita, que repetimos nas turmas de evangelização, em palestras e estudos é que devemos respeitar as diferenças. Um discurso muitas vezes da boca para fora, já que na prática o cenário é outro. Quantos médiuns e oradores espíritas abertamente homo/bi/pansexuais conhecemos? Quantas pessoas trans? Quantos evangelizadores infantis LGBTQIAP+ podem livremente ser quem são sem a pressão de se esconderem pelo medo de mães e pais tirarem seus filhos das turmas ou serem julgados por outros evangelizadores? Quantos, em nossas casas espíritas? Como espírita, ouvi ao lado do discurso “temos que respeitar as diferenças” e “todos somos irmãos” falas como “a homossexualidade é provação/expiação, a pessoa tem que resistir”, “não é certo”, “não é natural”, “deve estar obsidiado” e por causa disso vi colegas LGBTQIAP+ desistindo do espiritismo ou, muito pior, desistindo de si mesmos, parando de se amar. Que espíritas são esses que julgam e invalidam a diversidade humana? No dia em que uma pessoa não for acolhida numa casa espírita pelo simples fato de ser quem ela é, a casa perdeu completamente seu sentido, deixou de fazer Espiritismo e se tornou conivente com a cultura da violência que tira a vida de incontáveis pessoas, todos os dias, por preconceito e ódio. Todos nós, independentemente de por quem nos atraímos romântica e/ou sexualmente ou com que gênero nos identificamos, temos direito à vida, à saúde e à felicidade, mas só é possível que sejamos felizes e saudáveis se pudermos ser quem somos, autênticos e livres. O Espiritismo, como doutrina filosófica que compreende as consequências morais das relações que estabelecemos entre nós e os espíritos (KARDEC, 2013), tem como uma de suas grandes funções nos ajudar a sermos pessoas melhores e trabalharmos por uma sociedade melhor através de uma ética pautada em valores como o respeito, o altruísmo e a não violência, valores incompatíveis com a homofobia, a transfobia ou qualquer outro preconceito. Por isso, o Espiritismo, que deve caminhar de mãos dadas com o progresso e com a ciência, precisa falar sobre o assunto, de forma aberta e respeitosa, e ser instrumento de luta pela liberdade de ser e amar e pelo direito à vida de todas as pessoas, sem exceções. REFERÊNCIAS BLAKEMORE, Erin. Revolta de Stonewall deu origem ao movimento atual pelos direitos LGBTQIAP+. National Geographic, 2021. Disponível em: . Acesso em: 09 jul. 2022. CARTA CAPITAL. Há 30 anos, OMS retirava homossexualidade da lista de doenças. 2020. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2022. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Nota Pública – Comissão Nacional de Direitos Humanos apóia decisão do CFP. 2009. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2022. JUSTIÇA DO TRABALHO TRT 4ª REGIÃO. LGBTQIAP+: Você sabe o que essa sigla significa?. 2021. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2022. KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo [tradução da Redação de Reformador em 1884]. 56. ed. Brasília: FEB, 2013. LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, n. 9, p. 541-553, 2001. Disponível em: . Acesso em: 09 jul. 2022. MOREIRA, Andrei. Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal. Belo Horizonte: AME Editora, 2018. TRANSCENDEMOS. Transcendemos explica, sem data. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2022.

  • Reencarnação e o paradigma espírita da progressão das ideias

    por Saulo Monteiro “A lei dos renascimentos explica e completa o princípio da imortalidade. A evolução do ser indica um plano e um fim. Esse fim, que é a perfeição, não pode realizar-se em uma única existência, por mais longa que seja. Devemos ver na pluralidade das vidas da alma a condição necessária de sua educação e de seus progressos”. (DENIS, 2011, 181) Sabemos que a Doutrina Espírita está apoiada na ideia da imortalidade da alma. Allan Kardec dedicou-se à sistematização de uma Filosofia que tem como ponto de partida a noção de que a vida nunca acaba e isso pode ser atestado por aquilo que o codificador chamou de controle universal do ensino dos espíritos. Me explico: se um morto está se comunicando e traz informações confirmáveis, como em vários casos relatados na Revista Espírita e em O céu e o inferno; se essas informações podem ser ratificadas por outras almas já libertas, através de diversos médiuns em localidades distintas, temos aí um método que nos permite afirmar que os ensinos advêm de uma fonte não humana. Essa é a pedra fundadora do Espiritismo. No entanto, esses ensinos espíritas confirmados, avançaram, ainda em Kardec, trazendo-nos outros importantes pilares ao Espiritismo. Um dos mais importantes e centrais é a antiga transmigração progressiva, mais comumente denominada reencarnação. Para Léon Denis, como vimos na epígrafe acima, a oportunidade de progresso apoiada na multiplicidade da vida é o complemento da ideia fundadora de nossa Doutrina. A mesma ideia se exprime de modo mais completo aqui: “A reencarnação, confirmada pelas vozes de além-túmulo, é a única forma racional, sob a qual se possa admitir a reparação dos erros cometidos e a evolução gradual dos seres. Sem ela, não vemos, em absoluto, sanção moral satisfatória e completa, nem a possibilidade de concebermos um Ser que governe o Universo com justiça”. (DENIS, 2011, 182) Veja bem: se somos imortais e perfectíveis, como alcançar todo o conhecimento e avançar nas conquistas morais em uma breve vida de alguns anos? Não seria possível! Portanto, imortalidade e reencarnação são a dupla conceitual explicativa da romagem humana na visão espírita da vida. Temos um início, mas não acabaremos; ao contrário: progrediremos perpetuamente em uma viagem na direção do(a) Criador(a) e a estrada a percorrer tem o nome de reencarnação. Mas na última citação do Mestre de Tours, acima, há algo aparentemente problemático em termos de método. De que forma o Espiritismo chegou à reencarnação? Pelos Espíritos, via revelação! Em Kardec ela não é exatamente fruto de um método, como no caso da imortalidade. Não houve tempo para que ele pudesse observar mais de perto casos que sugerissem esse ensino, a não ser a checagem, é claro, entre médiuns e autores espirituais da informação em si. Não nos parece que ser a reencarnação fruto de uma revelação é propriamente um problema, mas sim um ótimo exemplo de como a Doutrina Espírita é progressiva, ou seja, não está pronta e acabada, não se encerra em um único livro ou autor, já que acompanha o progresso das coisas e é absolutamente influenciada pela ciência e por cada tempo histórico. No entanto sobra, para a Ciência espírita, uma tarefa: a comprovação pela experimentação. Por isso talvez, no livro O problema do ser e do destino, em que estamos preferencialmente mergulhados nessa análise, Denis reserva longas páginas para aquilo que ele chamou de “Prova experimentais das vidas sucessivas”, já que os pressupostos espíritas não se satisfazem em seguir uma lógica revelatória, mas vai mais além: procura constatar empiricamente e se abre às análises da ciência acadêmica sempre que questionada. A meu ver, vivemos no Espiritismo brasileiro uma crise de método de aquisição do conhecimento espírita. De um lado estão aqueles que entenderam que em Kardec está tudo o de que precisamos saber. Erram por ortodoxia. De outro lado os que aceitam toda e qualquer informação mediúnica por verdade. Erram por idolatria. Léon Denis não fez parte desses extremos, esteve sempre no campo do equilíbrio e por isso pode entender que a reencarnação estava presente em Kardec pela lógica, mas que para ser fiel ao próprio filho de Lyon precisava das confirmações experimentais. Abaixo pretendo reunir os dois principais argumentos materiais dos cientistas que puderam checar experimentalmente a reencarnação e que são lidos e/ou citados por Léon Denis, que conseguiu uma ótima síntese do que na Europa da virada do século XXI para o XX se produzia sobre o tema: a) Renovação da memória (ou regressão de memória ou lembranças de vidas passadas): essa é uma das mais interessantes áreas de pesquisa psíquica, para a qual Kardec certamente teria contribuído se houvesse tempo para maior observação do fenômeno. À época de Denis alguns brilhantes experimentadores, quase todos professores universitários e alguns materialistas, se dedicaram ao tema direta ou indiretamente[1]: Albert de Rochas, com seu central A exteriorização da sensibilidade; Th.. Ribot, em Doenças de memória; Frederic Myers, no livro A personalidade humana; Gilbert-Ballet, do Hospital de Paris, nos Anais das ciências psíquicas de 1906; Pierre Janet, o famoso professor da Sorbone, no seu O automatismo psicológico. Há também um sem número de exercícios de regressão de memória relatados em Congressos científicos, alguns com status de primeiras experiências, como as que os espíritas da Catalunha, na Espanha, relataram no Congresso espírita de Paris, em 1900 e que foi publicado em relatório oficial conforme cita Léon Denis: “Tendo sido o médium profundamente adormecido, por meio de passes magnéticos, Fernandez Colavida, presidente do grupo de Estudos Psíquicos de Barcelona, determinou-lhe que dissesse o que fizera na véspera, na antevéspera, uma semana, um mês, um ano antes, e, sucessivamente, fê-lo retornar à infância, que este descreveu com todos os detalhes. Sempre orientado pela mesma vontade, o médium relatou sua vida no Espaço, a morte em sua última encarnação e, continuamente estimulado, chegou até quatro encarnações, a mais antiga das quais foi uma existência completamente selvagem. A cada existência, os traços do médium mudavam de expressão. Para reconduzi-lo a seu estado habitual, fizeram-no voltar gradualmente até sua existência atual, em seguida, despertaram-no”.(DENIS, 2011, 217) Como podemos ver, Denis e os clássicos espíritas fazem algo fantástico para os tempos de hoje: vão ao encontro experimental daquilo que o próprio Kardec preferiu preservar na condição de um dogma. Não no sentido da indiscutibilidade, claro, mas fica como uma teoria a se confirmar. Vocês percebem essa virtude no codificador? Mesmo aquilo que passa por um método de conferência da informação espiritual, fica numa espécie de limbo aguardando que no mínimo um empirismo a experimente e confirme. Foi por tudo isso que Denis teve o cuidado de fazer uma revisão bibliográfica sobre o tema reencarnação que não perde em nada para uma tese de doutorado contemporânea. Seu objetivo me parece ter sido demonstrar aquilo que era uma tese, uma tese bem lógica, mas uma tese. Para não cansá-los(as) nesse artigo que já está grande, evito trazer para cá muitas citações, mas vale a pena conferir a quantidade e a diversidade de experiências que tão antes da propagação desse tipo de técnica, já estava relatada em Léon Denis, aliás o seu O problema do ser e do destino é um monumento espírita quase abandonado, onde ele conclui: “Vê-se que a doutrina das vidas sucessivas, ensinada pelas grandes escolas filosóficas do passado e, hoje em dia, pelo espiritualismo kardecista, recebe, através dos trabalhos dos estudiosos e dos pesquisadores, tanto de forma direta quanto indireta, novas e numerosas complementações. Graças à experimentação, as profundezas mais ocultas da alma humana se entreabrem e nossa própria história parece reconstituir-se, do mesmo modo que a geologia pôde reconstituir a história do globo, examinando suas poderosas bases”.(DENIS, 2011, 240) Modernamente esses estudos transbordaram do meio espírita para a paranormalidade e depois para a psicologia e psiquiatria. O melhor exemplo de seriedade sobre esses estudos no campo da ciência oficial e que muito contribuem para demonstrar o pioneirismo de Denis e seus pares é o do professor Ian Stevenson, da Universidade da Virgínia que depois de anos de pesquisa lança, em 1966, o seu estrondoso Vinte casos sugestivos de reencarnação. Com essa obra e as centenas de artigos em revistas sérias que seguem publicando os discípulos de Stevenson, podemos dizer com mais veemência que Denis no trecho acima: temos a validação desse importante componente conceitual espírita que é a reencarnação. Ele sai do campo da fé, da crença, para a estrutura racional de um pensamento sólido sobre aquilo que somos – almas em progressivas transmigrações. Não nos contentemos com objetos de fé no campo do Espiritismo, mas caminhemos sempre junto à ciência, procurando as validações que nos salvam da ortodoxia e da idolatria. b) As crianças-prodígio e a hereditariedade: essa é uma outra faceta argumentativa forte da tese da reencarnação. Apesar de não ser um regra (a regra é justamente o esquecimento do passado) como explicaríamos sem a reencarnação esses casos extraordinários de crianças geniais ainda na primeira infância? Como poderia Mozart aos quatro anos de idade executar uma sonata ao piano? Denis traz a hipótese espírita: “Os fenômenos deste gênero, registrados pela História, não podem ser fatos soltos, sem-ligação com o passado, produzindo-se ao acaso, no vazio dos tempos e do espaço. Eles demonstram, ao contrário, que o princípio organizador da vida em nós é um ser que chega a este mundo com todo um passado de trabalho e de evolução, resultado de um plano traçado e de um objetivo perseguido, ao longo de suas existências sucessivas. Cada encarnação encontra, na alma que reedita sua vida, uma cultura particular, aptidões, aquisições mentais, que explicam sua facilidade de trabalho e poder de assimilação. É por isso que Platão dizia: “Aprender é recordar-se”!” (DENIS, 2011, 262) Mas como no caso das recordações de vidas passadas, Denis não se contenta com a apresentação de casos da literatura universal, que por sinal são muitos e um mais espantoso do que o outro. Ele vai além; busca aquilo que se estava estudando acerca do assunto nos arraiais acadêmicos. Encontramos dezenas de citações reunidas e muito convincentes. Para nossa degustação, destaco a apresentação do professor e fisiologista Charles Richet (que não era espírita), que ganharia em 1913 um Nobel de Medicina, no Congresso de Psicologia de Paris, em 1900, ao qual ele simplesmente levou um menino de 3 anos que estava sob sua observação e pesquisa. Diz Richet citado por Léon Denis[2]: “(...)Em pouco tempo, tornou-se suficientemente hábil para, em 4 de dezembro de 1899, isto é, sem ainda ter completado três anos, tocar diante de um auditório bem numeroso de críticos e de músicos; em 26 de dezembro, com três anos e doze dias, tocou no Palácio Real de Madri, diante do rei e da rainha-mãe, seis composições que criara e que foram bem apreciadas. Ele não sabe ler, nem música, nem alfabeto; não tem talento especial para o desenho, mas, às vezes, diverte-se escrevendo árias musicais. É claro que o que escreve não tem sentido algum. Entretanto, é muito engraçado vê-lo pegar um pedacinho de papel, fazer, na parte de cima deste, um rabisco (que parece significar a natureza da peça: sonata, habanera ou valsa, etc.), depois, abaixo, escrever linhas pretas que ele afirma serem notas. Ele olha aquele papel satisfeito, põe-no sobre o piano e diz: “Vou tocar isto”. E, de fato, com aquele papelzinho tosco diante dos olhos, improvisa de maneira surpreendente”. Tanto Richet quanto outros numerosos estudiosos não espíritas do tema, reportam essa genialidade não à hereditariedade, uma vez que boa parte desses gênios não têm em família suporte cultural nem educacional de onde tirar tamanho talento. No caso citado acima, o cérebro físico nem o mínimo poderia oferecer, já que nem alfabetizada a criança era. Apesar de ainda haver caminhos a se percorrer acerca desse tema tão interdisciplinar, fica mais uma vez demonstrado pelo interesse da ciência formal, que não são especulativas ou baseadas em crenças, as desconfianças espíritas de que o prodígio intelectual dessas crianças têm gênese no acúmulo de conhecimento que a reencarnação propicia. À guisa de conclusão, reforçamos o ecletismo de Léon Denis. Sem que o achemos infalível, o que nem vem ao caso sobre a Terra, é preciso reconhecer que ninguém fez como ele. Denis produziu muito e com uma estética marcante; escreveu romances, artigos, discursos; deu a mesma atenção e vigor tanto à Filosofia quanto à Ciência. O mestre de Tours não cometeu o deslize de tantos outros, que enviesaram seu olhar sobre um único aspecto da Doutrina Espírita. Em verdade quem faz ciência ou filosofia de modo exclusivo, acaba por não fazer Espiritismo. Léon Denis sabia disso e tinha o discernimento kardequiano de que isoladas, as diversas áreas do pensamento espírita se diluiriam. Nosso esforço foi demonstrar com o exemplo da reencarnação, essa premissa de Allan Kardec de que as ideias espíritas progridem. É preciso um novo Espiritismo, um Espiritismo de reunião, sem isolamentos, ortodoxias ou idolatrias, mas com teses sempre em experimentação, sem crenças preconcebidas. Isso é, para nós, a fé raciocinada. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DENIS, Léon. O problema do ser e do destino [tradução de Homero de Carvalho]. 1ª edição. Rio de Janeiro: CELD, 2011 KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos [tradução de Guillon Ribeiro]. 93ª edição. Rio de Janeiro: FEB, 1944 STEVENSON, Ian. Vinte casos sugestivos de reencarnação. [tradução de Marcelo Cesar]. 1ª edição. São Paulo: Vida e consciência, 2010 [1] Alguns títulos foram livremente traduzidos para o português. Para detalhes, ver capítulo 14, segunda parte de O problema do ser e do destino. [2] Caso originalmente publicado e estudado nos Anais das ciências psíquicas em abril de 1908, página 98

  • Espiritismo é religião? O que é o Espiritismo?

    por Bruno Lins Quintanilha Artigo para o projeto Léondenisonline, dezembro, 2021 – Disponível em: https://www.leondenisonline.com/nossoblog Republicado em Reformador de abril de 2022. O Espiritismo é uma religião? Antes de responder a esta pergunta é necessário definirmos o que entendemos por religião. Sempre que utilizamos alguma palavra é muito importante que façamos uma definição clara e objetiva do significado que damos a ela, como a entendemos, porque muitos termos são polissêmicos, ou seja, possuem mais de um significado dependendo da situação em que são utilizados ou mesmo da pessoa que os utiliza. Por exemplo, quando menciono o termo manga, posso estar me referindo à fruta, mas também posso estar me referindo a uma parte específica de uma roupa. Quando menciono o termo vela, posso estar me referindo à vela de um barco, a uma modalidade esportiva ou ao objeto feito de cera composto por um pavio que acendo com uma chama e serve para iluminar ambientes escuros. Inclusive, muitos dos nossos problemas de relacionamento – profissionais, com amigos, com família ou românticos – surgem a partir de mal-entendidos que se originam em falhas de comunicação, onde não expressamos com exatidão o que sentimos ou pensamos e, dessa forma, as pessoas têm maior dificuldade em interpretar e compreender nossas ideias. Sendo assim, quanto mais pudermos ser objetivos, claros e sintéticos em nossos discursos ou falas, melhor a comunicação e mais chances de expressarmos com exatidão o que sentimos e pensamos e não sermos mal interpretados ou mal-entendidos. Uma dica de leitura para nos ajudar a lidar melhor com esse processo de comunicação, troca, diálogo, expressão de ideias e emoções, é a obra Comunicação Não Violenta, de Marshall Rosenberg (2006)[1]. O fato é que considero o termo religião polissêmico, ou seja, como possuindo mais de um significado possível. Uma primeira possibilidade de significado é considerar a religião como uma instituição criada por seres humanos, datada historicamente e localizada geograficamente, que pode vir a ter um conjunto de regras, sacerdócio, hierarquia, lógica geralmente verticalizada, dogmas (princípios de fé não passíveis de questionamento ou crítica) e, frequentemente, projetos de hegemonia ou de poder material de caráter político ou até mesmo econômico. A impressão que tenho é que no imaginário popular, quando menciono o termo “religião”, é isso que enumeramos aqui que vem à mente de grande parte das pessoas. Sob esse aspecto, o Espiritismo não é, em sua essência e proposta original, de forma nenhuma, religião. Uma segunda possibilidade de significado para o termo religião é considerá-la enquanto um sentimento, uma forma de conexão interior e particular do ser humano com uma força maior, com o sagrado, com Deus, independentemente de instituições, regras fechadas ou lugares. Léon Denis, por exemplo, segue nessa linha de pensamento e afirma, em O Problema do Ser, do Destino e da Dor, capítulo 1, que “a Religião é o esforço da Humanidade para se comunicar com a Essência eterna e divina.". Já na obra Depois da Morte, também no capítulo 1, o mesmo autor declara que "A verdadeira religião é um sentimento; é no coração humano, e não nas formas ou manifestações exteriores, que está o melhor templo do Eterno.”. Ainda no capítulo 1 da mesma obra, Denis recorre à etimologia do termo religião, que significaria uma espécie de religação, de conexão entre os seres humanos e a divindade. Sob esse aspecto, em minha opinião, o Espiritismo poderia ser considerado uma religião. Entretanto, o fato é que quando falamos em religião, as pessoas misturam ambas essas acepções e cada um tem uma percepção muito particular do termo e de sua significação segundo suas próprias experiências de vida, cultura e subjetividades. Sendo assim, me parece que por essa polissemia e confusão em torno do termo é que Kardec aparenta desviar-se constantemente de afirmar o Espiritismo enquanto religião, pois em grande parte das vezes, quando esse termo é mencionado há a associação com templos, regras, hierarquias, verticalidade, dogmas, poder material, etc, e não apenas com um sentimento livre a autônomo de conectividade com algo superior. Particularmente, enxergo o Espiritismo enquanto um campo do conhecimento e uma doutrina (aberta, progressiva, dinâmica), ou seja, um conjunto sistematizado de ideias e de valores. O Espiritismo não surge da fé religiosa – muito embora não trabalhe contra ela e até a estimule a seu modo. O Espiritismo surge da investigação de fenômenos (mesas girantes, ruídos, comunicação dos mortos) que sempre ocorreram na história da humanidade mas que, no século XIX, estavam acontecendo sistematicamente[2] em alguns lugares e, até então, ninguém conseguia explicar de forma satisfatória. Essa investigação da comunicação dos mortos e sua intervenção no mundo material utilizou elementos de ciência, como um método, a construção de teorias, hipóteses, de verificação e, ao mesmo tempo, a investigação desses fenômenos também utilizou-se de pensamento filosófico, na medida em que travando contato com Espíritos através de médiuns, efetuaram-se uma série de questões que o ser humano sempre se fez (porque estamos aqui, quem somos, de onde viemos, para onde vamos, etc). A partir dessa pesquisa em que se utilizaram elementos de ciência e filosofia, construiu-se todo um sistema de ideias e valores, com alto poder explicativo, com uma ética, um conjunto de valores potente, e com um forte componente consolador, de esperança, mas também de ação social na busca da construção de um mundo mais justo e fraterno. Por fim, o Espiritismo enquanto doutrina estimula o despertar de fé e de uma religiosidade independente de instituições e de pessoas, uma religiosidade autônoma, aberta, humanista e humanizante, de uma conexão direta entre Criador e criatura. Allan Kardec definia o Espiritismo, no preâmbulo da obra “O que é o Espiritismo”, da seguinte forma: “O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas mesmas relações.” Num esforço imperfeito de síntese para a atualidade, eu me atrevo a classificar o Espiritismo na seguinte frase: doutrina, sistema de ideias com elementos de ciência e filosofia, com uma dimensão ética e com potencial para despertar e alimentar fé e religiosidade autônomas e abertas. Além disso, também gosto de ver o Espiritismo enquanto lente, enquanto uma espécie de óculos que nos ajuda a olhar para o mundo e interpretá-lo um pouquinho mais a fundo, a partir de um paradigma espiritualista, ou seja, de uma lógica que leva em consideração que a vida não termina com a morte do corpo físico. Os conceitos centrais do Espiritismo (mediunidade, Espírito, Deus, evolução e reencarnação)[3] e a sua ética (pautada em valores como altruísmo, empatia, respeito e não violência) nos conferem instrumentos a mais de explicação e de análise acerca de vários fenômenos e processos, nos permitem tentar avançar um pouquinho mais na explicação e compreensão de uma série de coisas que sem esses conceitos e valores permanecem inexplicados. Além disso, é importante observar que o Espiritismo não inventa nenhuma ideia nova, mas apenas tenta reelaborar ideias muito antigas da humanidade sob uma perspectiva moderna (falamos aqui do século XIX). O próprio Kardec tinha ciência disso quando afirma no item 104 do livro O que é o Espiritismo que “O Espiritismo ensina poucas verdades absolutamente novas, ou mesmo nenhuma, (...)”. E para agregarmos mais materiais sobre nossa reflexão acerca do Espiritismo, avalio como importante um trecho do livro Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec, editado pela FEB. No capítulo referente a Viagem Espírita em 1861, em um Discurso de Allan Kardec durante o banquete que lhe foi oferecido em Lyon, ele afirma o seguinte a respeito do Espiritismo: é uma Doutrina puramente moral, que absolutamente não se ocupa dos dogmas e deixa a cada um inteira liberdade de suas crenças, pois não impõe nenhuma. E a prova disto é que tem aderentes em todas, entre os mais fervorosos católicos, como entre os protestantes, os judeus e os muçulmanos. O Espiritismo repousa sobre a possibilidade de comunicação com o mundo invisível, isto é, com as almas. Ora, como os judeus, os protestantes e os muçulmanos têm almas como nós, o que significa que podem comunicar-se tanto com eles quanto conosco, e que, conseguintemente, eles podem ser espíritas como nós. Não é uma seita política, como não se trata de uma seita religiosa; é a constatação de um fato que não pertence mais a um partido do que a eletricidade e as estradas de ferro; é, insisto, uma doutrina moral, e a moral está em todas as religiões, em todos os partidos. (KARDEC, 2005, p. 194) Neste trecho, Kardec aponta o Espiritismo enquanto um conjunto de conhecimentos que poderia ser apropriado por qualquer pessoa, independentemente de sua crença ou religião. Tanto que ele revela que em seu tempo haviam pessoas de outras religiões que aderiam ao Espiritismo sem necessariamente abandonar suas crenças anteriores. Isso faz muito sentido, por exemplo, quando vemos a mediunidade, que é uma faculdade do ser humano. Há indivíduos médiuns em todas ou quase todas as religiões, culturas e sociedades. E, nesse sentido, o Espiritismo pode ser uma ferramenta[4] para auxiliar a entender essa faculdade e a lidar com ela de forma saudável e equilibrada, por exemplo. Dessa forma, vejo o Espiritismo como uma contribuição para o pensamento humano, para a religiosidade das pessoas e para a sociedade. Não o enxergo como um rival de outras denominações, crenças, filosofias, das ciências ou das religiões. Não o enxergo como uma ideia que vai homogeneizar, suplantar, hegemonizar. Vejo ele como um conjunto potente de ideias e valores que tem muito a oferecer e trocar. Vejo o Espiritismo como um estímulo – mas não o único – a uma espiritualidade humanizante, altruísta, livre, consciente, espiritualidade essa que o Pastor Henrique Vieira, no livro O amor como revolução, define da seguinte forma: Espiritualidade é abertura, fundamentalismo é fechamento. Espiritualidade se move nas perguntas, fundamentalismo, em certezas irretocáveis. Espiritualidade é experiência e contemplação, fundamentalismo é doutrina. Espiritualidade se move no amor e na liberdade, fundamentalismo, na culpa e no medo. Espiritualidade transita nas diferenças e percebe a diversidade como expressão sagrada, fundamentalismo vê a diversidade como maldição. Portanto, a experiência religiosa é saudável quando alimenta a espiritualidade sem sufocá-la. (VIEIRA, 2019, p. 65) Em um outro trecho, em outra parte, ele continua: Sendo assim, a espiritualidade não é certeza objetiva, porque transita na dúvida. Espiritualidade não é institucionalizar o Sagrado, fechando-o em dogmas e verdades inabaláveis, mas é o exercício de tatear o Sagrado tal qual um bebê passando os dedos no rosto da mãe. Espiritualidade é mais abertura do que fechamento; mais perguntas do que respostas; mais consolo e caminhada do que benção ou maldição. (VIEIRA, 2019, p. 51) Por fim, em outro trecho, Henrique Vieira arremata sua ideia de Deus e espiritualidade dizendo assim: Gosto de pensar em Deus assim, como o sorrido da Maria. Esse sorriso que é para mim, mas não só. Gosto de pensar no amor de Deus como algo parecido com o que sinto por ela. Deus não é uma verdade fechada, petrificada em um texto e que precisa ser defendido dos hereges. É como amar Maria e saber que não sou o dono dela. Amar a Deus é saber que não o controlo, que ele sorri para outros povos, culturas e religiões. (VIEIRA, 2019, p. 50) Oxalá possamos nos apropriar do Espiritismo de forma que possamos vir a alimentar essa espiritualidade aberta, agregadora, libertadora, acolhedora, aconchegante, humanista e humanizante, empática, horizontal, democrática, que valoriza a diversidade, que nos conecte com algo maior, nos alimente enquanto fé saudável, sadia, altruísta e generosa, que nos faça esperançar e despertar emoções e sentimentos saudáveis, que nos conecte com esse poder superior, essa força da vida que cada povo chama por um nome diferente e que nós aqui no Ocidente denominados de Deus, mas que no fundo é o supremo amor e fonte da vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DENIS, Leon. Depois da Morte: exposição da doutrina dos espíritos. 1. ed especial. Rio de Janeiro: FEB, 2008. DENIS, Leon. O Problema do Ser, do Destino e da Dor. 32. ed. Brasília: FEB, 2013. DOYLE, Arthur Conan. A História do Espiritualismo: de Swendenborg ao início do século XX [tradução de José Carlos da Silva Silveira]. 1. ed. Brasília: FEB, 2013. KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo [tradução da Redação de Reformador em 1884]. 56. ed. Brasília: FEB, 2013. KARDEC, Allan. Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec [tradução de Evandro Noleto Bezerra]. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. PEREIRA, Yvonne do Amaral. Pelos Caminhos da Mediunidade Serena. (Obra de entrevistas e textos organização por Pedro Camilo). 3. ed. Bragança Paulista: Instituto Lachatre, 2013. ROSENBERG, Marshall. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006. VIEIRA, Henrique. O Amor como Revolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019. [1] Yvonne Pereira, na obra Pelos Caminhos da Mediunidade Serena, possui observação que julgamos relevante acerca da necessidade de não lermos apenas livros espíritas, mas sim tomarmos contato com literaturas diversas para que, dessa forma, possamos ampliar nossa capacidade de reflexão e nossa visão de mundo, sociedade e mesmo do próprio Espiritismo: “Há ocasiões em que meus guias me recomendam ler obras profanas de todos os tipos, desde que esclareçam e edifiquem a mente. Atermo-nos somente à literatura espírita será exclusivismo que limitará a nossa ação em favor da própria doutrina que defendemos.” (PEREIRA, 2013, p. 91) [2] O escritor escocês Arthur Conan Doyle (2013, p. 15), na obra A história do espiritualismo, escrevendo a respeito da diferença entre os fenômenos de comunicação com os mortos no passado distante e no seu tempo (século XIX) afirma: “A única diferença entre os fatos antigos e o moderno movimento é que aqueles podem ser descritos como episódios de viajantes perdidos de alguma esfera distante, enquanto este último apresenta as características de uma invasão organizada.” [3]Me recordo que a primeira vez que ouvi a menção a esses 5 conceitos como sendo os pilares do Espiritismo foi em uma palestra do Vinicius Lara. [4] Não temos a pretensão de colocar o Espiritismo como a única maneira de aprender a lidar com a mediunidade, pois enquanto doutrina, o Espiritismo é extremamente jovem do ponto de vista histórico e, antes de seu surgimento, muitos médiuns já houveram na face da Terra que utilizaram suas faculdades sem necessariamente conhecê-lo. Além do mais, há outros grupos que lidam com a mediunidade e não são espíritas. Não considero acertado encarar o Espiritismo como único caminho para a educação da mediunidade.

  • MPD: Palavras de Agradecimento

    Olá, amigos e benfeitores do Movimento Pés Descalços! Estamos aqui, hoje, para agradecer a você pelo apoio dado no último mês, seja através da contribuição mensal na Benfeitora do MPD, pelas doações financeiras pontuais ou pelas doações de itens de higiene e gêneros alimentícios, que permitiram a realização do café da manhã e a entrega de kits de higiene pessoal no domingo, dia 3 de maio. Ficamos muito felizes, pois conseguimos realizar a nossa maior ação nas ruas, tanto pelo número de assistidos quanto pela extensão geográfica. O trabalho durou toda manhã nas ruas dos bairros de Cascadura, Madureira e Marechal Hermes, e distribuiu café da manhã e água para 150 pessoas e 200 kits de higiene pessoal. Os kits continham papel higiênico, pasta e escova de dentes, sabonete, cotonetes, lenços umedecidos e absorventes íntimos para os kits femininos, e máscaras protetoras, que foram confeccionadas e doadas por um amigo querido do MPD. Além dos itens de higiene, os kits também continham um pacote de biscoitos e bombom (seguem algumas fotos em anexo). Estamos atravessando um período muito difícil, onde algumas mazelas sociais vêm à tona e deixam em maior vulnerabilidade os cidadãos mais desfavorecidos. A pandemia, apesar de ter aumentado o sentimento de solidariedade entre as pessoas, afastou muitos companheiros dos trabalhos sociais por se encontrarem em situação de risco de saúde, o que faz aumentar a demanda por ajuda. Mas, não podemos perder as esperanças em dias melhores, sem pandemia, e em que ações como essa não serão necessárias, pois todos terão direito à moradia e alimentação adequada. Enquanto não conseguimos atingir esse objetivo, temos uma ação urgente de tentar amenizar as agruras da vida de muitos irmãos. Esperamos continuar contando com a colaboração de vocês para as atividades dos próximos meses. Nossa próxima saída às ruas será no dia 7 de junho. Se não for possível a colaboração material, espalhe a informação e apresente o trabalho aos amigos e parentes. Grande abraço! Se mantenham seguros! Muita paz! Equipe do Movimento Pés Descalços QUER AJUDAR? Acesse a página do Movimento Pés Descalços em nosso site!

  • Isolamento pelo coronavírus reduz distribuição de comida a moradores de rua no RJ

    Olá pessoal! Estamos atravessando um período muito difícil em diversos níveis. De forma mais penosa se encontram as pessoas em situação de rua. Além de receberem poucas informações sobre o momento presente e também o acesso muito precário às medidas de higiene necessárias em uma pandemia, tiveram, de forma drástica, uma redução nas doações e auxílios diversos que partiam dos trabalhos sociais focados nesses irmãos e irmãs. Muitos grupos que distribuíam roupas, alimento e outros itens, por diversos motivos, escolheram interromper suas atividades. Não julgamos, visto que muitos companheiros e companheiras que atuam nessas tarefas se encontram dentro dos grupos de risco. Por outro lado, a demanda dos nossos irmãos e irmãs aumentou e aumentará demasiadamente. Assim, estamos, mais uma vez, pedindo a ajuda de vocês! No mês de abril, conseguimos doar 169 kits de higiene, além de oferecer café da manhã e água para 100 pessoas. E isso só foi possível com a sua ajuda! Para a nossa próxima distribuição de kits e cafés da manhã do MPD, que ocorrerá em 03/05/2020, nossa meta será de 200 Kits de higiene, cafés da manhã e água mineral. Para saber mais sobre o MPD, os itens que doamos e como ajudar de outras maneiras, vá até os destaques sobre o MPD, clique no link da bio onde você poderá contribuir com o nosso crowdfunding ou converse conosco no direct do instagram ou no messenger do facebook! 💛💙 Nosso Instagram: @sociedadeespiritasorella Nosso Facebook: @sesorella

  • Novidade: Clube do Livro JEAP

    Siiiiiiiiiim, você leu certo! 😍 Começaremos um clube do livro aqui na JEAP! 📚❤️ O que esse livro tem a ver com a nossa vida? O que André Luiz propõe pra nossa reflexão? Bora nos debruçar sobre ele juntos? 😃 "Os Mensageiros" é uma obra psicografada por Chico Xavier, de autoria do espírito André Luiz, onde é apresenta experiências de espíritos que reencarnaram com instruções específicas para atingir o aprimoramento pessoal, mas que nem sempre foram bem-sucedidos em suas tarefas. André é escalado para prestar atendimento fraterno na Terra e aprende que o trabalho é fonte de renovação mental e grande passo rumo à construção do bem. ❤️ ⠀ Nosso primeiro encontro será dia 25/04 e debateremos o prefácio e os capítulos 1 e 2. ✨ Fica atento no Instagram da JEAP que será divulgado os capítulos a serem discutidos em cada encontro! Acesse aqui: Instagram JEAP

bottom of page