Rodrigo Farias - 2a parte - Fevereiro 2024
No artigo anterior, falamos de alguns dos desafios que a Igreja Católica Romana enfrentou entre fins do século XVIII e meados do XIX. Hoje trataremos de como ela reagiu a isso e, no dizer do historiador Ambrogio Caiani, “perdeu um reino para ganhar o mundo”.
A expressão já antecipa o fim dessa história. Os Estados Papais, que a Igreja se esforçou tanto para preservar nas primeiras décadas do século, foram engolidos durante o processo de unificação da Itália, em 1861. Dividida durante séculos em vários reinos, ducados e cidades-estado, foi só depois de muita articulação política e conflitos militares que a Península Italiana se tornou um só país. A Igreja Católica fez o que pôde para proteger seus territórios disso, inclusive mobilizando tropas papais e voluntários vindos de todo o mundo. Mas foi inútil. E para tornar a derrota ainda mais amarga, o novo Estado italiano escolheu ter sua capital justamente em Roma, a sede da Santa Sé, até então governada pelo Papa.
Era o fim de uma era. O governo direto da Igreja sobre largos territórios deixava oficialmente de existir. Isso não queria dizer que ela perdera toda a sua influência. Na Irlanda, por exemplo, um clero conservador dominava a vida cultural do país; na América Latina, o status da Igreja e de suas propriedades ainda era um grande pivô nas disputas e guerras civis entre liberais e conservadores. Mas ainda assim, o Catolicismo sofrera um baque: o moderno Estado liberal havia lhe imposto uma derrota no coração de seus domínios.
Mas essa perda de poder temporal viria a ser contrabalançada por uma revitalização do poder espiritual. Se não era mais possível mais ter um reino literal sob seu comando, o poder eclesiástico sobre milhões de corações e mentes em todo o mundo ainda era uma realidade. E alguns eventos sobrenaturais vieram reforçar essa influência.
Por exemplo, o que aconteceu em 1846, na cidadezinha de La Salette, nos Alpes franceses. Dois adolescentes, Maximin Giraud e Mélanie Calvat, cuidavam de algumas vacas quando se depararam com uma misteriosa dama, alta e luminosa, que chorava copiosamente sentada sobre uma pedra. “Não tenham medo”, ela lhes disse, dando-lhes algumas boas notícias. Embora o seu filho estivesse zangado com o mundo, por este ter se afastado de Deus, ainda havia tempo para o arrependimento e a conversão. Também deu conselhos sobre a plantação de batatas, que vinha sofrendo com pragas desde anos anteriores. E, por fim, recomendou que o povo orasse mais, recitando o Pai-Nosso e a Ave Maria, e confiou alguns segredos aos dois jovenzinhos. Depois disso, a depender da versão dada por Maximin e Mélanie, a Senhora subiu até as nuvens ou desapareceu por trás da montanha próxima. A história logo chegou ao padre local e, mais tarde, aos bispos, que autenticaram a história. Logo La Salette se tornou ponto de peregrinação de devotos, que creem que a “Senhora” era ninguém menos que a Virgem Maria.
Em 1858, fenômeno parecido se deu em Lourdes, também na França, e se tornou ainda mais famoso. Novamente uma jovem, Bernadette Subirous, de 14 anos, se deparou com uma mulher misteriosa numa gruta enquanto buscava lenha. Logo ela percebeu que sua irmã e a amiga que a acompanhavam não conseguiam vê-la. Voltando outras vezes, Bernadette chegou a fazer um “teste”, jogando água benta na aparição e rezando o rosário, e se convenceu de que ela não era de origem demoníaca. A partir do terceiro encontro, de um total de 18, a mulher começou a falar com Bernadette, pedindo-lhe que voltasse outras vezes.
A história desses encontros se espalhou, e mais uma vez coisas fantásticas começaram a acontecer. Como em La Salette, uma fonte de água brotou no local, e peregrinos começaram a frequentá-la. Não tardou para que relatos de curas milagrosas começassem a circular, aumentando ainda mais a visibilidade de Lourdes. Clérigos e até policiais interrogaram a jovem Bernadette, que passou a visitar a gruta sob o olhar de uma multidão de curiosos e devotos. As aparições se estenderam de fevereiro a julho de 1858, e ao fim a França tinha o que viria a ser um dos mais famosos centros de peregrinação cristã do mundo. A partir daí, todos os anos, dezenas e dezenas de curas eram atribuídas à fonte miraculosa e à intercessão da Virgem.
Um detalhe na história de Lourdes chama atenção. Quando Bernadette perguntou à senhora quem ela era, a resposta foi: “Sou a Imaculada Conceição”. Esse era o termo usado para o mais novo dogma católico, proclamado pelo Papa Pio IX em 1854. Segundo ele, Maria de Nazaré não fora uma mortal qualquer: além de perpetuamente virgem, intocada pelo desejo sexual, ela fora concebida sem a mancha do pecado original que, na doutrina católica, assola o resto da humanidade. Por consequência, Maria não era apenas mais uma santa, mas um ser excepcional desde antes mesmo de receber Jesus em seu ventre.
Dessa forma, a devoção a Maria, que existia há séculos, ganhava uma clareza teológica que jamais tivera. Se antes um S. Tomás de Aquino, por exemplo, podia rejeitar a Imaculada Conceição como uma hipótese não convincente, agora, por decreto papal, quem duvidasse dessa condição singular de Maria seria automaticamente excomungado. Afinal, dogma não se discute.
Mas Pio IX não parou por aí. O mais importante papa do século XIX deu ainda outro passo para reafirmar o poder espiritual da Igreja, e do seu cargo de papa. Era preciso, em sua visão, combater os erros que tornavam a sociedade moderna, com suas ideias liberais vindas do Iluminismo, uma inimiga da única fé legítima. Primeiro, em 1864, ele publicou o Sílabo dos Erros, nos quais enumerava dezenas de ideias e práticas que a Igreja condenava — em particular, várias das liberdades que mencionamos no último episódio: liberdade religiosa, liberdade de imprensa, a separação entre Estado e Igreja, e até o racionalismo, as doutrinas de religião natural e a soberania popular.
Pouco depois, em 1869, Pio IX daria um passo além e, no Concílio Vaticano I, tornou oficial o dogma da infalibilidade papal. Isso significava que a Igreja oficializava e investia toda sua autoridade na crença de que o Papa, quando falava a partir da autoridade de seu cargo, não podia errar em matéria moral ou religiosa, e, portanto, seus decretos nessas áreas eram compulsórios para todo católico. Nada mais de discussões infindáveis de pontos teológicos: Roma locuta, causa finita. Era o sonho dos ultramontanos: a Igreja Católica finalmente se unificava sob uma única autoridade, ainda que agora só no sentido espiritual.
Foi justamente nesse momento, diante dessa Igreja em guerra aberta aos princípios da modernidade, que uma nova forma de espiritualismo surgiu, abraçada justamente aos valores que o Sílabo de 1864 rejeitava. Ciência, racionalidade, progresso, reforma social e, acima de tudo, liberdade eram as marcas dessa nova forma de vivenciar a espiritualidade — nas quais o Espiritismo de Allan Kardec se incluía.
Bibliografia sugerida
CAIANI, Ambrogio A. Losing a Kingdom, Gaining the World: The Catholic Church in the Age of Revolution and Democracy. Apollo, 2023. [Edição Kindle.]
DUFFY, Eamon. Saints and Sinners: A History of the Popes. Yale University Press, 2014. [Edição Kindle.]
SHARP, Lynn L. Secular Spirituality: Reincarnation and Spiritism in Nineteenth-Century France. Lexington Books, 2006. [Edição Kindle.]
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