Rodrigo Farias
Para entender qualquer movimento, seja ele filosófico, religioso, social ou político, a compreensão do seu contexto é fundamental. Para isso, é preciso olhar não apenas para o que o próprio movimento diz, mas também para o que está acontecendo à sua volta em seu lugar e tempo de origem. No caso específico do Espiritismo, surgido na França de meados do século XIX, uma boa forma de começar é olhar para a principal força religiosa atuante no país, e à qual Kardec se viu forçado a responder em vários pontos de sua obra: a Igreja Católica Romana. Assim, é dela que falaremos neste artigo, apresentando um breve sobrevoo sobre o estado da Igreja, em especial na França, durante aproximadamente o período entre a ascensão de Napoleão Bonaparte e o Concílio Vaticano I.
A situação da Igreja na França passou por mudanças traumáticas na virada do século XVIII para o XIX. Antes da Revolução de 1789, a Igreja era um pilar da ordem estabelecida, depois chamada de Antigo Regime. Nele, uma sociedade de nobres e plebeus era governada por um rei por suposto direito divino com as bênçãos da autoridade religiosa. Não é de espantar que, quando a Revolução veio o ataque à Igreja foi feroz. A crítica iluminista à religião cristã como superstição e obscurantismo, agora deu vazão à repressão, ao confisco de bens, a cassação de privilégios, o controle estatal e até a tentativa de fundar uma nova religião da Razão. O anticlericalismo se tornaria um traço frequente da ideologia liberal que inspirava os revolucionários, especialmente na França, ao longo de todo o século.
Mas nem tudo era ideologia ou desejo de desforra. Havia um componente prático na preocupação dos liberais com a Igreja. Afinal, numa época de comunicações precárias e sem ensino público, era ela, a Igreja, a instituição com maior alcance no seio do povo. O clero não apenas dominava as poucas escolas existentes, mas seus sermões ajudavam a formar a opinião pública, fosse para defender mudanças – como tantos religiosos fizeram na Revolução de 1789 – ou, o que era mais comum, para deixar as coisas como estavam.
Os governantes europeus sabiam muito bem disso. Ainda no tempo de Luís XIV, o grande ícone do absolutismo monárquico, a França adotou oficialmente o Galicanismo. Esse movimento dizia que a Igreja de cada país devia estar subordinada ao rei, e não ao Papa. Então, era natural que esse mesmo rei, escolhido por Deus, escolhesse os bispos da Igreja em seu território, e até os destituísse quando julgasse apropriado. Dessa forma, a estrutura da Igreja se tornava um recurso a mais nas mãos de um Estado que se valia da fé cristã para se sustentar.
O problema era que, nessa época, a Igreja também tinha interesses temporais, não só espirituais. Por exemplo, ela governava territórios próprios, os Estados Papais, mais ou menos no centro da Itália de hoje. Defendê-los era questão de honra para os papas, especialmente nesse momento da história, o início do século XIX, em que a autoridade eclesiástica era tão contestada, fosse por quem queria extingui-la em nome da razão ou dos que queriam usurpá-la para si. E mais de uma vez, o Papa precisou pedir a potências estrangeiras, como a Áustria, que ajudassem os exércitos papais – isso mesmo, exércitos papais – a repelir invasores ou abafar revoltas dos seus próprios súditos. Súditos esses que, muitas vezes, queriam para si as mesmas liberdades que os revolucionários de 89 tinham instituído primeiro na França e depois noutras partes da Europa.
O liberalismo foi a fonte filosófica dos grandes princípios usados pela burguesia na Revolução Francesa. Os chamados direitos civis, hoje consagrados nas constituições de todas as democracias modernas dignas desse nome, nascem dessa maneira de entender a política. Entre esses direitos, na época chamados de liberdades (daí o termo “liberalismo”), alguns eram vistos pelos mais conservadores dentro da Igreja como uma ameaça em potencial: a liberdade de consciência, ou seja, poder crer em qualquer religião que se queira; liberdade de culto, ou seja, poder praticar, sem represália ou limitação legal, os ritos de sua fé; liberdade de expressão, que significava exprimir seu pensamento sem, por exemplo, temer acusações de heresia, blasfêmia ou impiedade; e a liberdade de imprensa, pela qual as opiniões inconvenientes podiam se espalhar pelo restante da sociedade; isso sem falar das iniciativas por uma educação laica, que ameaçavam uma atividade que há séculos era praticamente uma prerrogativa eclesiástica. Do ponto de vista da Igreja, que se via como a guardiã da moral e do bem-estar espiritual da sociedade, reconhecer tais direitos era como abrir mãos dos poderes que lhe permitiam cumprir adequadamente seu papel, pois nessa época a ideia de que religião era uma questão privada de cada um ainda soava controversa. Pelo contrário, ainda era forte nas fileiras clericais a crença de que a Igreja tinha o direito legítimo, e o dever, de fiscalizar as ideias que circulavam na sociedade para assim salvar o maior número de almas por todos os meios necessários. Para ela, portanto, o poder temporal era uma ferramenta de salvação.
Voltando ao caso francês, existia ali o Galicanismo, um movimento que se consolidou durante o reino do rei Luís XIV, na segunda metade do século 17. Sua tese principal era a de que a Igreja de cada país devia estar subordinada ao monarca, e não ao Papa. Lembremos que essa é uma época em que se trabalhava com a ideia de que a autoridade do soberano era dada diretamente por Deus. Não por acaso, é do mesmo Luís XIV a célebre frase L’État c’est moi (O Estado sou eu). Então, seria natural que esse mesmo rei escolhido por Deus escolhesse os bispos da Igreja em seu território, e até os destituísse quando julgasse apropriado. Além disso, o galicanismo também propunha que o soberano era independente do papa em assuntos temporais e que a autoridade do Sumo Pontífice estava abaixo da dos concílios, e suas decisões poderiam ser alteradas por eles.
O Galicanismo sobreviveu na Igreja francesa aos abalos da revolução e do Império Napoleônico. Era uma doutrina muito conveniente para os governantes, e foi mantida mesmo depois da volta da dinastia Bourbon ao poder, a partir de 1814. Isso gerou um movimento católico de reação e conhecido como Ultramontanismo, que defendia com afinco que o Papa, e não o rei ou os concílios, deveria ser a autoridade máxima da igreja em todos os assuntos. No começo, esse ultramontanismo se misturava com os chamados reacionários, aqueles que queriam fazer o relógio voltar para trás, para antes da Revolução Francesa – e assim devolver o maior número possível de privilégios do clero e da nobreza. E eles bem que tentaram: nesse período que vai da queda de Napoleão até 1830, a política assume formas bem conservadoras. Havia eleições, mas só podia votar ou se candidatar quem tivesse um certo nível de renda e propriedade. E, para azar dos ultramontanos, a dinastia restaurada, apesar de se dizer católica e devota, não renunciou ao poder que o Galicanismo lhe dava. A luta para centralizar o poder religioso a Roma continuava.
Mas, em 1830, veio o susto. Uma nova revolução explodiu na França. Barricadas se erguem em Paris, multidões saem à rua, e o rei Carlos X é posto para fora em nome de princípios liberais. Mais uma vez, os Bourbons perdem o poder, e agora para sempre. Em seu lugar, assume Luís Felipe de Orléans, conhecido como o “rei burguês”. Luís Felipe, frequentemente visto com chapéu e guarda-chuva, não ostentava a pompa dos antecessores. Em seu governo, a burguesia, e não a nobreza e o clero, era a principal beneficiária. Mas ele também não renunciou ao sistema galicano. O Estado continuava nomeando e remunerando clérigos.
Essa situação, que não era só na França, foi um estímulo para Roma iniciar um processo de reafirmação de sua autoridade que se estendeu pelas próximas décadas. E não foi só uma questão de política, mas que também envolveu milagres, novos dogmas, e até guerras. Disso trataremos no próximo artigo.
Bibliografia:
CAIANI, Ambrogio A. Losing a Kingdom, Gaining the World: The Catholic Church in the Age of Revolution and Democracy. Apollo, 2023. [Edição Kindle.]
DUFFY, Eamon. Saints and Sinners: A History of the Popes. Yale University Press, 2014. [Edição Kindle.]
SHARP, Lynn L. Secular Spirituality: Reincarnation and Spiritism in Nineteenth-Century France. Lexington Books, 2006. [Edição Kindle.]
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