top of page

Reencarnação e o paradigma espírita da progressão das ideias

  • Foto do escritor: Larissa Corrêa
    Larissa Corrêa
  • 7 de jul. de 2022
  • 9 min de leitura

Atualizado: 8 de ago. de 2022

por Saulo Monteiro



“A lei dos renascimentos explica e completa o princípio da imortalidade. A evolução do ser indica um plano e um fim. Esse fim, que é a perfeição, não pode realizar-se em uma única existência, por mais longa que seja. Devemos ver na pluralidade das vidas da alma a condição necessária de sua educação e de seus progressos”. (DENIS, 2011, 181)

Sabemos que a Doutrina Espírita está apoiada na ideia da imortalidade da alma. Allan Kardec dedicou-se à sistematização de uma Filosofia que tem como ponto de partida a noção de que a vida nunca acaba e isso pode ser atestado por aquilo que o codificador chamou de controle universal do ensino dos espíritos. Me explico: se um morto está se comunicando e traz informações confirmáveis, como em vários casos relatados na Revista Espírita e em O céu e o inferno; se essas informações podem ser ratificadas por outras almas já libertas, através de diversos médiuns em localidades distintas, temos aí um método que nos permite afirmar que os ensinos advêm de uma fonte não humana. Essa é a pedra fundadora do Espiritismo.


No entanto, esses ensinos espíritas confirmados, avançaram, ainda em Kardec, trazendo-nos outros importantes pilares ao Espiritismo. Um dos mais importantes e centrais é a antiga transmigração progressiva, mais comumente denominada reencarnação. Para Léon Denis, como vimos na epígrafe acima, a oportunidade de progresso apoiada na multiplicidade da vida é o complemento da ideia fundadora de nossa Doutrina. A mesma ideia se exprime de modo mais completo aqui:


“A reencarnação, confirmada pelas vozes de além-túmulo, é a única forma racional, sob a qual se possa admitir a reparação dos erros cometidos e a evolução gradual dos seres. Sem ela, não vemos, em absoluto, sanção moral satisfatória e completa, nem a possibilidade de concebermos um Ser que governe o Universo com justiça”. (DENIS, 2011, 182)

Veja bem: se somos imortais e perfectíveis, como alcançar todo o conhecimento e avançar nas conquistas morais em uma breve vida de alguns anos? Não seria possível! Portanto, imortalidade e reencarnação são a dupla conceitual explicativa da romagem humana na visão espírita da vida. Temos um início, mas não acabaremos; ao contrário: progrediremos perpetuamente em uma viagem na direção do(a) Criador(a) e a estrada a percorrer tem o nome de reencarnação.


Mas na última citação do Mestre de Tours, acima, há algo aparentemente problemático em termos de método. De que forma o Espiritismo chegou à reencarnação? Pelos Espíritos, via revelação! Em Kardec ela não é exatamente fruto de um método, como no caso da imortalidade. Não houve tempo para que ele pudesse observar mais de perto casos que sugerissem esse ensino, a não ser a checagem, é claro, entre médiuns e autores espirituais da informação em si. Não nos parece que ser a reencarnação fruto de uma revelação é propriamente um problema, mas sim um ótimo exemplo de como a Doutrina Espírita é progressiva, ou seja, não está pronta e acabada, não se encerra em um único livro ou autor, já que acompanha o progresso das coisas e é absolutamente influenciada pela ciência e por cada tempo histórico.


No entanto sobra, para a Ciência espírita, uma tarefa: a comprovação pela experimentação. Por isso talvez, no livro O problema do ser e do destino, em que estamos preferencialmente mergulhados nessa análise, Denis reserva longas páginas para aquilo que ele chamou de “Prova experimentais das vidas sucessivas”, já que os pressupostos espíritas não se satisfazem em seguir uma lógica revelatória, mas vai mais além: procura constatar empiricamente e se abre às análises da ciência acadêmica sempre que questionada.


A meu ver, vivemos no Espiritismo brasileiro uma crise de método de aquisição do conhecimento espírita. De um lado estão aqueles que entenderam que em Kardec está tudo o de que precisamos saber. Erram por ortodoxia. De outro lado os que aceitam toda e qualquer informação mediúnica por verdade. Erram por idolatria. Léon Denis não fez parte desses extremos, esteve sempre no campo do equilíbrio e por isso pode entender que a reencarnação estava presente em Kardec pela lógica, mas que para ser fiel ao próprio filho de Lyon precisava das confirmações experimentais.


Abaixo pretendo reunir os dois principais argumentos materiais dos cientistas que puderam checar experimentalmente a reencarnação e que são lidos e/ou citados por Léon Denis, que conseguiu uma ótima síntese do que na Europa da virada do século XXI para o XX se produzia sobre o tema:


a) Renovação da memória (ou regressão de memória ou lembranças de vidas passadas): essa é uma das mais interessantes áreas de pesquisa psíquica, para a qual Kardec certamente teria contribuído se houvesse tempo para maior observação do fenômeno. À época de Denis alguns brilhantes experimentadores, quase todos professores universitários e alguns materialistas, se dedicaram ao tema direta ou indiretamente[1]: Albert de Rochas, com seu central A exteriorização da sensibilidade; Th.. Ribot, em Doenças de memória; Frederic Myers, no livro A personalidade humana; Gilbert-Ballet, do Hospital de Paris, nos Anais das ciências psíquicas de 1906; Pierre Janet, o famoso professor da Sorbone, no seu O automatismo psicológico. Há também um sem número de exercícios de regressão de memória relatados em Congressos científicos, alguns com status de primeiras experiências, como as que os espíritas da Catalunha, na Espanha, relataram no Congresso espírita de Paris, em 1900 e que foi publicado em relatório oficial conforme cita Léon Denis:


“Tendo sido o médium profundamente adormecido, por meio de passes magnéticos, Fernandez Colavida, presidente do grupo de Estudos Psíquicos de Barcelona, determinou-lhe que dissesse o que fizera na véspera, na antevéspera, uma semana, um mês, um ano antes, e, sucessivamente, fê-lo retornar à infância, que este descreveu com todos os detalhes. Sempre orientado pela mesma vontade, o médium relatou sua vida no Espaço, a morte em sua última encarnação e, continuamente estimulado, chegou até quatro encarnações, a mais antiga das quais foi uma existência completamente selvagem. A cada existência, os traços do médium mudavam de expressão. Para reconduzi-lo a seu estado habitual, fizeram-no voltar gradualmente até sua existência atual, em seguida, despertaram-no”.(DENIS, 2011, 217)

Como podemos ver, Denis e os clássicos espíritas fazem algo fantástico para os tempos de hoje: vão ao encontro experimental daquilo que o próprio Kardec preferiu preservar na condição de um dogma. Não no sentido da indiscutibilidade, claro, mas fica como uma teoria a se confirmar. Vocês percebem essa virtude no codificador? Mesmo aquilo que passa por um método de conferência da informação espiritual, fica numa espécie de limbo aguardando que no mínimo um empirismo a experimente e confirme. Foi por tudo isso que Denis teve o cuidado de fazer uma revisão bibliográfica sobre o tema reencarnação que não perde em nada para uma tese de doutorado contemporânea. Seu objetivo me parece ter sido demonstrar aquilo que era uma tese, uma tese bem lógica, mas uma tese.


Para não cansá-los(as) nesse artigo que já está grande, evito trazer para cá muitas citações, mas vale a pena conferir a quantidade e a diversidade de experiências que tão antes da propagação desse tipo de técnica, já estava relatada em Léon Denis, aliás o seu O problema do ser e do destino é um monumento espírita quase abandonado, onde ele conclui:


“Vê-se que a doutrina das vidas sucessivas, ensinada pelas grandes escolas filosóficas do passado e, hoje em dia, pelo espiritualismo kardecista, recebe, através dos trabalhos dos estudiosos e dos pesquisadores, tanto de forma direta quanto indireta, novas e numerosas complementações. Graças à experimentação, as profundezas mais ocultas da alma humana se entreabrem e nossa própria história parece reconstituir-se, do mesmo modo que a geologia pôde reconstituir a história do globo, examinando suas poderosas bases”.(DENIS, 2011, 240)

Modernamente esses estudos transbordaram do meio espírita para a paranormalidade e depois para a psicologia e psiquiatria. O melhor exemplo de seriedade sobre esses estudos no campo da ciência oficial e que muito contribuem para demonstrar o pioneirismo de Denis e seus pares é o do professor Ian Stevenson, da Universidade da Virgínia que depois de anos de pesquisa lança, em 1966, o seu estrondoso Vinte casos sugestivos de reencarnação. Com essa obra e as centenas de artigos em revistas sérias que seguem publicando os discípulos de Stevenson, podemos dizer com mais veemência que Denis no trecho acima: temos a validação desse importante componente conceitual espírita que é a reencarnação. Ele sai do campo da fé, da crença, para a estrutura racional de um pensamento sólido sobre aquilo que somos – almas em progressivas transmigrações. Não nos contentemos com objetos de fé no campo do Espiritismo, mas caminhemos sempre junto à ciência, procurando as validações que nos salvam da ortodoxia e da idolatria.


b) As crianças-prodígio e a hereditariedade: essa é uma outra faceta argumentativa forte da tese da reencarnação. Apesar de não ser um regra (a regra é justamente o esquecimento do passado) como explicaríamos sem a reencarnação esses casos extraordinários de crianças geniais ainda na primeira infância? Como poderia Mozart aos quatro anos de idade executar uma sonata ao piano? Denis traz a hipótese espírita:


“Os fenômenos deste gênero, registrados pela História, não podem ser fatos soltos, sem-ligação com o passado, produzindo-se ao acaso, no vazio dos tempos e do espaço. Eles demonstram, ao contrário, que o princípio organizador da vida em nós é um ser que chega a este mundo com todo um passado de trabalho e de evolução, resultado de um plano traçado e de um objetivo perseguido, ao longo de suas existências sucessivas. Cada encarnação encontra, na alma que reedita sua vida, uma cultura particular, aptidões, aquisições mentais, que explicam sua facilidade de trabalho e poder de assimilação. É por isso que Platão dizia: “Aprender é recordar-se”!” (DENIS, 2011, 262)

Mas como no caso das recordações de vidas passadas, Denis não se contenta com a apresentação de casos da literatura universal, que por sinal são muitos e um mais espantoso do que o outro. Ele vai além; busca aquilo que se estava estudando acerca do assunto nos arraiais acadêmicos.


Encontramos dezenas de citações reunidas e muito convincentes. Para nossa degustação, destaco a apresentação do professor e fisiologista Charles Richet (que não era espírita), que ganharia em 1913 um Nobel de Medicina, no Congresso de Psicologia de Paris, em 1900, ao qual ele simplesmente levou um menino de 3 anos que estava sob sua observação e pesquisa. Diz Richet citado por Léon Denis[2]:


“(...)Em pouco tempo, tornou-se suficientemente hábil para, em 4 de dezembro de 1899, isto é, sem ainda ter completado três anos, tocar diante de um auditório bem numeroso de críticos e de músicos; em 26 de dezembro, com três anos e doze dias, tocou no Palácio Real de Madri, diante do rei e da rainha-mãe, seis composições que criara e que foram bem apreciadas. Ele não sabe ler, nem música, nem alfabeto; não tem talento especial para o desenho, mas, às vezes, diverte-se escrevendo árias musicais. É claro que o que escreve não tem sentido algum. Entretanto, é muito engraçado vê-lo pegar um pedacinho de papel, fazer, na parte de cima deste, um rabisco (que parece significar a natureza da peça: sonata, habanera ou valsa, etc.), depois, abaixo, escrever linhas pretas que ele afirma serem notas. Ele olha aquele papel satisfeito, põe-no sobre o piano e diz: “Vou tocar isto”. E, de fato, com aquele papelzinho tosco diante dos olhos, improvisa de maneira surpreendente”.

Tanto Richet quanto outros numerosos estudiosos não espíritas do tema, reportam essa genialidade não à hereditariedade, uma vez que boa parte desses gênios não têm em família suporte cultural nem educacional de onde tirar tamanho talento. No caso citado acima, o cérebro físico nem o mínimo poderia oferecer, já que nem alfabetizada a criança era. Apesar de ainda haver caminhos a se percorrer acerca desse tema tão interdisciplinar, fica mais uma vez demonstrado pelo interesse da ciência formal, que não são especulativas ou baseadas em crenças, as desconfianças espíritas de que o prodígio intelectual dessas crianças têm gênese no acúmulo de conhecimento que a reencarnação propicia.


À guisa de conclusão, reforçamos o ecletismo de Léon Denis. Sem que o achemos infalível, o que nem vem ao caso sobre a Terra, é preciso reconhecer que ninguém fez como ele. Denis produziu muito e com uma estética marcante; escreveu romances, artigos, discursos; deu a mesma atenção e vigor tanto à Filosofia quanto à Ciência. O mestre de Tours não cometeu o deslize de tantos outros, que enviesaram seu olhar sobre um único aspecto da Doutrina Espírita. Em verdade quem faz ciência ou filosofia de modo exclusivo, acaba por não fazer Espiritismo. Léon Denis sabia disso e tinha o discernimento kardequiano de que isoladas, as diversas áreas do pensamento espírita se diluiriam.


Nosso esforço foi demonstrar com o exemplo da reencarnação, essa premissa de Allan Kardec de que as ideias espíritas progridem. É preciso um novo Espiritismo, um Espiritismo de reunião, sem isolamentos, ortodoxias ou idolatrias, mas com teses sempre em experimentação, sem crenças preconcebidas. Isso é, para nós, a fé raciocinada.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DENIS, Léon. O problema do ser e do destino [tradução de Homero de Carvalho]. 1ª edição. Rio de Janeiro: CELD, 2011

KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos [tradução de Guillon Ribeiro]. 93ª edição. Rio de Janeiro: FEB, 1944

STEVENSON, Ian. Vinte casos sugestivos de reencarnação. [tradução de Marcelo Cesar]. 1ª edição. São Paulo: Vida e consciência, 2010


[1] Alguns títulos foram livremente traduzidos para o português. Para detalhes, ver capítulo 14, segunda parte de O problema do ser e do destino. [2] Caso originalmente publicado e estudado nos Anais das ciências psíquicas em abril de 1908, página 98



Comments


Logotipos SES RGB_Horizontal 2 branco.png
  • Youtube
  • Sociedade Espírita Sorella
  • Facebook

Mensagem enviada.

bottom of page