por Renata Strino
Há muitas formas de ser e viver no mundo. A diversidade faz parte da vida e nos enriquece enquanto indivíduos e grupos. No entanto, a sociedade muitas vezes impõe padrões que limitam essa diversidade. Na cultura cristã ocidental, por exemplo, valoriza-se a atração afetiva e sexual por pessoas do gênero oposto (heterossexualidade) e a identificação e expressão de gênero de acordo com o sexo biológico (cisgeneridade), padrão que considera a existência apenas de dois gêneros, o feminino e o masculino, o que chamamos de binaridade de gênero. Essa valorização e imposição do padrão heterossexual e cisgênero chamamos de heterocisnormatividade. Mas tudo o que nos limita nos adoece, física e psiquicamente, podendo gerar preconceito, violência e morte. Se o considerado bom e certo é ser heterossexual e cisgênero, quem não segue esse padrão é julgado como errado, ruim, imoral, como se nossa sexualidade e gênero definissem nosso caráter e pudéssemos escolher mudá-los. É impossível mudar a sexualidade, nós já nascemos quem somos, e ela não define caráter. Mas isso nós sabemos hoje. Nem sempre foi assim.
A homossexualidade já foi considerada doença pelas ciências da saúde e aqui temos algumas datas importantes, de acordo com nota do Conselho Federal de Psicologia (2009):
Em 1973 a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da lista de doenças psiquiátricas, entendendo-a como uma variante normal do comportamento humano.
Em 1975 foi a vez da Associação Americana de Psicologia e em 1985, do Conselho Federal Brasileiro de Psicologia.
Finalmente em 17 de maio de 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade, e em junho de 2018 a transexualidade, da Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID).
Em 1991, a Anistia Internacional passou a considerar a discriminação contra a homossexualidade como violação aos direitos humanos.
Existem infinitas possibilidades de ser que transgridem à heterocisnormatividade, que hoje a ciência já entende como variantes normais. Entendemos, também, que tentar “curar” ou “reverter” a sexualidade de alguém, impedir a pessoa de ser quem ela é, proibi-la de amar e de ser autêntica é atentar gravemente contra sua saúde mental, tornando-a suscetível a transtornos como de ansiedade, depressão e até mesmo suicídio. É importante ressaltar, inclusive, que psicólogos que fazem terapia de reversão sexual (conhecida popularmente como Cura Gay) hoje devem ser denunciados ao Conselho Federal de Psicologia. Não há cura para o que não é doença. O que precisa ser curado é o preconceito e o primeiro passo para a cura é aprender. As variantes do comportamento humano que fogem ao padrão cisheteronormativo são tão vastas e ricas que talvez seja arrogante acreditar que conhecemos todas. Algumas delas, no entanto, são conhecidas, possuem nomes e estão representadas nessa sigla: LGBTQIAP+.
L = lésbica
G = gay
B = bissexual
T = transgênero, transexual, travesti
Q = queer
I = intersexo
A = assexual
P = pansexual
+ = outras possibilidades
Mais adiante vamos entender cada uma, mas antes é interessante ressaltar que a sigla nem sempre foi essa.
Até meados do século XIX, as relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram consideradas um pecado que qualquer pessoa poderia cometer se a ele sucumbisse (sodomia). Foi somente a partir da segunda metade do século XIX que a pessoa homossexual foi compreendida como um “tipo” de indivíduo, que por essa característica seria marcado e segregado, considerado um desvio da norma. Tudo girava em torno da questão moral: enquanto alguns grupos consideravam a homossexualidade uma anormalidade, sendo a pessoa homossexual inferior às heterossexuais, outros grupos defendiam seu caráter natural, mas o movimento era ainda pequeno e seus grupos, clandestinos. (LOURO, 2001)
Foi então que o dia 28 de junho de 1969 entrou para a história. Em Nova York, nos Estados Unidos, bares gays eram frequentemente locais de batidas policiais – clientes e funcionários eram ameaçados, espancados e presos. Nessa época, havia leis na maioria dos municípios dos Estados Unidos que criminalizavam a homossexualidade, além de negar direitos básicos. Neste dia, no entanto, no bar Stonewall Inn, os clientes reagiram gerando uma rebelião que durou alguns dias e ficou conhecida como Revolta de Stonewall. As protagonistas dessa resistência foram mulheres pretas transgêneros, travestis e drag queens, sendo o nome mais conhecido o da Marsha P. Johnson. É interessante ressaltar que o bar era frequentado pelas pessoas mais marginalizadas da comunidade, incluindo pessoas em situação de rua e até mesmo menores de idade. Atualmente a data de 28 de junho ficou conhecida como o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+ e o mês de junho é celebrado como o Mês do Orgulho em várias partes do mundo (mas na época essa ainda não era a sigla, mais adiante vamos chegar nela). A partir de então, a luta da comunidade por direitos e contra o preconceito começou a ganhar mais força. (BLAKEMORE, 2021)
Pensando em termos de Brasil, foi em 1970 que a homossexualidade começou a aparecer mais nas artes e publicidades. No ano de 1975 surgiu o Movimento de Libertação Homossexual no Brasil, contando com a participação de intelectuais que foram exilados durante a ditadura militar e quando de volta ao país trouxeram as inquietações políticas sexuais, feministas, raciais e ecológicas vivenciadas por eles durante o exílio – agregou-se, assim, às lutas e debates sobre homossexualidade novas dimensões (de gênero, classe, etnia, nacionalidade, etc). (LOURO, 2001)
Na década de 1980, o surgimento da AIDS, apresentada como o “câncer gay”, aumentou a homofobia, intensificando a discriminação, a intolerância, o desprezo de parte da sociedade. Aumentou também, no entanto, o número de grupos ativistas, fortalecendo os movimentos (LOURO, 2001), agora identificados pela sigla GLS: gays, lésbicas e simpatizantes.
Nos anos 1990, houve a inclusão de bissexuais e pessoas transgênero, ficando GLBT. Posteriormente o L de lésbicas passou a ser a primeira letra, trocando de lugar com o G, enfatizando a dimensão da questão de gênero que atravessa a luta da comunidade. Ficou, então, na época a sigla LGBT. Com o passar do tempo ela vem aumentando, mais grupos vão sendo incluídos buscando trazer cada vez mais compreensão e representatividade.
Para entendermos melhor, vamos ao significado de cada uma das letras da atual sigla LGBTQIAP+:
L = LÉSBICAS
Mulheres que se atraem afetiva e/ou sexualmente por mulheres, ou seja, mulheres que se atraem pelo mesmo gênero, que são homossexuais.
G = GAYS
Homens que se atraem afetiva e/ou sexualmente por homens, ou seja, homens que se atraem pelo mesmo gênero, que são homossexuais.
B = BISSEXUAIS
Pessoas que se atraem afetiva e/ou sexualmente por mais de um gênero.
Alguns acreditam que as pessoas bissexuais se atraem somente por mulheres e homens, seguindo uma lógica de pensamento binária. No entanto, pessoas bissexuais podem se atrair por mulheres, homens e por qualquer outra identidade de gênero.
Existe uma crença falsa de que pessoas bissexuais, por se atraírem por mais de um gênero, são promíscuas, indecisas e mais propensas, por isso, a traições. Essa crença é um absurdo, fruto de ignorância e preconceito.
T = TRANSGÊNEROS, TRANSEXUAIS, TRAVESTIS
A transgeneridade é a condição na qual a identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquela atribuída ao gênero designado no nascimento, que geralmente é baseado no sexo biológico. É diferente da cisgeneridade, citada anteriormente.
Observações:
TRANSEXUAL: É a pessoa que não se identifica com o gênero atribuído de acordo com seu sexo biológico e passa a se identificar como se sente melhor, mais autenticamente. Nesse caso, há uma transição social que pode incluir ou não tratamentos hormonais ou cirúrgicos.
Então, pelo que vimos até agora, entendemos que:
Cisgeneridade: gênero em concordância com o sexo biológico.
Transgeneridade: gênero em discordância do sexo biológico.
Uma pessoa que nasce com sexo biológico feminino e se reconhece e se expressa no mundo como mulher = é uma mulher cis.
Uma pessoa que nasce com sexo biológico masculino e se reconhece e se expressa no mundo como homem = é um homem cis.
Uma pessoa que nasce com sexo biológico feminino e se reconhece e se expressa no mundo como uma pessoa masculina = é um homem trans ou pessoa transmasculina.
Uma pessoa que nasce com sexo biológico masculino e se reconhece e se expressa no mundo como uma pessoa feminina = é uma mulher trans ou pessoa transfeminina.
Uma pessoa que nasce seja com o sexo biológico feminino, seja com o masculino, mas não se reconhece apenas como um ou como outro é uma pessoa não binária (que pode incluir identidades como gênero fluido, agênero, etc).
Pessoas não binárias podem se sentir melhor ao serem referenciadas não com os pronomes femininos (ela/dela) ou masculinos (ele/dele), de acordo com nossa língua portuguesa, mas com os pronomes neutros (elu/delu). Você pode (e deve) perguntar para a pessoa quais sãos os pronomes dela, como ela gosta de ser chamada. Não tem problema nenhum, pelo contrário, mostra respeito e consideração.
Mais recentemente, muitas pessoas já vêm representando a não binaridade de gênero com a letra N na sigla: LGBTQIAPN+.
TRAVESTI: É necessariamente uma pessoa que nasceu com o sexo biológico masculino, mas se identifica como uma pessoa feminina e usa os pronomes ela/dela. O termo travesti, que antes era utilizado de forma pejorativa, vem sendo ressignificado, possui uma história e uma marca social importante e passou a ter mais peso político. (TRANSCENDEMOS, sem data)
Q = QUEER
Queer é um termo que não tem tradução exata no português, mas pode ser entendido como “estranho”, “peculiar”, “extraordinário” e é usado para identificar pessoas que estão fora dos padrões de sexualidade e gênero impostos pela nossa sociedade, ou seja, fora da cisheteronormatividade.
No século XIX, queer era um termo usado pejorativamente, de forma ofensiva, para se referir a pessoas homossexuais, mas seu sentido foi ressignificado por ativistas nos anos 1980, enfatizando sua perspectiva de contestação da heteronormatividade compulsória da sociedade. Nos anos 1990, um grupo de intelectuais passa a usar o termo queer para identificar sua perspectiva teórica, que problematiza as noções de sujeito e identidade, como por exemplo Michel Foucault, cujas construções discursivas serviram de base para o surgimento da Teoria Queer. A Teoria Queer afirma que a identidade de gênero é resultado de uma construção social, e não de uma funcionalidade biológica, e tem como destaque a teórica Judith Butler. (LOURO, 2001)
Atualmente o termo queer é usado de forma positiva, com o intuito político de dar visibilidade a quem está fora dos padrões impostos.
O termo queer é mais comumente utilizado fora do Brasil.
I = INTERSEXO
São pessoas que nascem com genitália ambígua, ou seja, com conformação dos sexos biológicos feminino e masculino ou com genitália de um e tecido gonadal de outro.
Os intersexos não são um gênero, e sim uma classificação, fruto de uma anomalia biológica. No entanto, é importante ressaltar que por anomalia dizemos sobre algo diferente do que acontece comumente com as pessoas. Não há nenhum valor negativo ou pejorativo.
Em muitos casos são realizadas cirurgias e um gênero é escolhido por médicos e familiares. No entanto, com o tempo e seu desenvolvimento, a pessoa pode se identificar com um gênero diferente do escolhido na cirurgia, podendo gerar conflitos psicológicos.
A = ASSEXUAIS
Pessoas que experimentam nenhuma ou pouca atração sexual. No entanto, isso não significa que ela não pratique sexo, beije, se apaixone em nenhuma circunstância. Ela pode ter atração romântica por outro indivíduo, bem como gostar de toques e ter o desejo de estar em um relacionamento afetivo. Pode também ter atração sexual, porém reduzida e/ou em apenas situações específicas.
A assexualidade é compreendida como um amplo espectro (é um termo guarda-chuva) que reúne diversos níveis de ausência de atração sexual e/ou romântica. Exemplos: demissexual, assexual estrito, assexual fluido, grayssexual, etc. A atração romântica é diferente da atração sexual.
Atração romântica: desejo de ter um relacionamento amoroso e praticar atos românticos.
Atração sexual: ligada à vontade de ter contato sexual com outra(s) pessoa(s).
P = PANSEXUAIS
Pansexualidade é a atração física, afetiva e/ou sexual independentemente do gênero ou qualquer outra expressão da sexualidade.
+ = OUTRAS POSSIBILIDADES
Por fim, o sinal de mais (+), que há uns anos foi incorporado à sigla, abriga outras possibilidades de orientação sexual e identidade de gênero que existem.
Ø Ser uma pessoa cisgênero, transgênero, não binária, gênero fluido, etc é uma coisa: é a identidade de gênero.
Ø Ser homossexual, heterossexual, bissexual, pansexual, assexual, etc, é outra coisa: é a orientação sexual.
Ø Nascer com órgãos e glândulas sexuais apenas femininas, apenas masculinas ou ser intersexo: é o sexo biológico.
Como disse lá no início, as formas de ser e viver no mundo são diversas. Se tem algo que aprendemos na casa espírita, que repetimos nas turmas de evangelização, em palestras e estudos é que devemos respeitar as diferenças. Um discurso muitas vezes da boca para fora, já que na prática o cenário é outro. Quantos médiuns e oradores espíritas abertamente homo/bi/pansexuais conhecemos? Quantas pessoas trans? Quantos evangelizadores infantis LGBTQIAP+ podem livremente ser quem são sem a pressão de se esconderem pelo medo de mães e pais tirarem seus filhos das turmas ou serem julgados por outros evangelizadores? Quantos, em nossas casas espíritas?
Como espírita, ouvi ao lado do discurso “temos que respeitar as diferenças” e “todos somos irmãos” falas como “a homossexualidade é provação/expiação, a pessoa tem que resistir”, “não é certo”, “não é natural”, “deve estar obsidiado” e por causa disso vi colegas LGBTQIAP+ desistindo do espiritismo ou, muito pior, desistindo de si mesmos, parando de se amar.
Que espíritas são esses que julgam e invalidam a diversidade humana? No dia em que uma pessoa não for acolhida numa casa espírita pelo simples fato de ser quem ela é, a casa perdeu completamente seu sentido, deixou de fazer Espiritismo e se tornou conivente com a cultura da violência que tira a vida de incontáveis pessoas, todos os dias, por preconceito e ódio. Todos nós, independentemente de por quem nos atraímos romântica e/ou sexualmente ou com que gênero nos identificamos, temos direito à vida, à saúde e à felicidade, mas só é possível que sejamos felizes e saudáveis se pudermos ser quem somos, autênticos e livres.
O Espiritismo, como doutrina filosófica que compreende as consequências morais das relações que estabelecemos entre nós e os espíritos (KARDEC, 2013), tem como uma de suas grandes funções nos ajudar a sermos pessoas melhores e trabalharmos por uma sociedade melhor através de uma ética pautada em valores como o respeito, o altruísmo e a não violência, valores incompatíveis com a homofobia, a transfobia ou qualquer outro preconceito. Por isso, o Espiritismo, que deve caminhar de mãos dadas com o progresso e com a ciência, precisa falar sobre o assunto, de forma aberta e respeitosa, e ser instrumento de luta pela liberdade de ser e amar e pelo direito à vida de todas as pessoas, sem exceções.
REFERÊNCIAS
BLAKEMORE, Erin. Revolta de Stonewall deu origem ao movimento atual pelos direitos LGBTQIAP+. National Geographic, 2021. Disponível em: <https://www.nationalgeographicbrasil.com/cultura/2021/06/gay-lgbt-revolta-de-stonewall-movimento-atual-pelos-direitos-lgbtqia>. Acesso em: 09 jul. 2022.
CARTA CAPITAL. Há 30 anos, OMS retirava homossexualidade da lista de doenças. 2020. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/diversidade/ha-30-anos-oms-retirava-homossexualidade-da-lista-de-doencas/>. Acesso em: 06 jul. 2022.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Nota Pública – Comissão Nacional de Direitos Humanos apóia decisão do CFP. 2009. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/nota-pblica-comisso-nacional-de-direitos-humanos-apia-deciso-do-cfp/>. Acesso em: 06 jul. 2022.
JUSTIÇA DO TRABALHO TRT 4ª REGIÃO. LGBTQIAP+: Você sabe o que essa sigla significa?. 2021. Disponível em: <https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/465934>. Acesso em: 06 jul. 2022.
KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo [tradução da Redação de Reformador em 1884]. 56. ed. Brasília: FEB, 2013.
LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, n. 9, p. 541-553, 2001. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ref/a/64NPxWpgVkT9BXvLXvTvHMr/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 09 jul. 2022.
MOREIRA, Andrei. Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal. Belo Horizonte: AME Editora, 2018.
TRANSCENDEMOS. Transcendemos explica, sem data. Disponível em: <https://transcendemos.com.br/transcendemosexplica/trans/>. Acesso em: 10 jul. 2022.
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