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Natureza, cultura, religião e espiritualidade

Por Bruno Lins Quintanilha


Você já se perguntou o que é natureza e tentou responder de forma simples e direta? Nem sempre é tão rápido ou fácil definir conceitos e palavras e, por vezes, cada pessoa definirá de forma diferente. Para mim, natureza é tudo aquilo que não foi feito pelo ser humano: sol, água, rios, mares, ar, animais, plantas, solo, a vida. Nada disso têm origem humana. Na verdade, até o próprio ser humano é natureza, pois ele não deu origem a si mesmo. Biologicamente, somos frutos da evolução das espécies, que é um fenômeno natural e, por mais que nos reproduzamos, nós não demos origem a nós mesmos enquanto espécie; logo, também somos natureza.


De um outro lado, temos a cultura, que é tudo aquilo que foi feito pelo ser humano. Podemos dividir a cultura em material e imaterial. São objetos culturais materiais casas, ruas, cidades, roupas, celular, computador, ventilador, máquina de lavar, fogão, etc. E são cultura imaterial a culinária, a música, o idioma, o carnaval, samba, roda de capoeira, natal, páscoa, etc.


Além disso, diria que um dos grandes problemas em relação aos conceitos de natureza e cultura ocorre quando os confundimos e tomamos um pelo outro. Vou dar um exemplo. Do ponto de vista da natureza, o homem é superior a mulher? O negro é inferior ao branco? A orientação sexual define superioridade ou inferioridade? A resposta para todas essas perguntas é não. Entretanto, culturalmente, ou seja, a partir de algum momento, em algum lugar, pessoas começaram a pensar e a instituir que haveria hierarquia entre homens, mulheres, negros, brancos, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transsexuais, criando assim, historicamente, o machismo, o racismo, a hoje chamada lgbtfobia e muitos outros tipos de diferenciações artificiais e violentas. O que ocorre, é que ou por ignorância, ou por interesses, ou por mau caratismo e crueldade, ou por tudo isso junto, há pessoas e grupos que acreditam que hierarquia entre homens e mulheres, negros e brancos ou pessoas de orientações sexuais diferentes é algo que sempre existiu, que está na natureza, e não que foram criações perversas e totalmente equivocadas do próprio ser humano. Machismo, racismo, lgbtfobia, enormes desigualdades socioeconômicas, guerras, escravidão, exploração, são todos produtos culturais, criações humanas. Nada disso está na natureza, nada disso é natural.


E tudo o que é cultura, pode tanto ser construído quanto desconstruído. Logo, é perfeitamente possível falarmos de uma cultura de equidade de gênero, de uma cultura de equidade racial, de uma cultura de respeito pela diversidade sexual, de uma cultura de compartilhamento e equidade socioeconômica, de uma cultura de justiça e paz, de uma cultura de cooperação - ao invés de exploração. Mas feita essa distinção entre natureza e cultura, fica uma questão: religião é cultura ou natureza? Ou seja, é ou não é uma criação humana? O fato é que agradando ou não, a resposta é que a religião é uma criação humana e, portanto, não está na natureza. Catolicismo, protestantismo, islamismo, umbanda e muitas outras têm locais e datas de fundação, ou seja, não existiram desde sempre. E como criações e instituições humanas, as religiões estão sujeitas a todas as contradições da humanidade: elas mesclam luzes e sombras, virtudes e lacunas, contribuições e prejuízos; podem auxiliar na libertação do ser humano, na construção de sua autonomia, mas também podem escravizá-lo; podem contribuir para um mundo mais justo, pacífico, fraterno, mas também podem estimular preconceitos, estereótipos, visões distorcidas e até mesmo violência. Podem mesmo auxiliar em alguns pontos e prejudicar em outros simultaneamente.


Logo, sendo a religião um elemento da cultura, proveniente do ser humano, ela precisa ser encarada de forma crítica também. Os livros chamados de sagrados foram escritos e organizados por mãos humanas, e todo ser humano é limitado. Essas obras podem conter muitos ensinos, histórias e reflexões úteis, inspiradoras, belas, mas também contém elementos e ideias que são de outro contexto histórico, social, cultural e que na atualidade podem mesmo ser absurdos. Logo, é preciso filtrar o humano e aproveitar o que for realmente superior e útil. Para isso, é necessária uma crítica saudável e madura. E, para além disso, uma cultura de diálogo, abertura e não dogmatismo.


Num contraponto a religião, temos a espiritualidade. Para mim, espiritualidade seria qualquer sensação ou percepção no ser humano que transcende, de alguma forma, o estritamente material e fisiológico. Por exemplo: uma pessoa está em uma praça cheia de natureza e tranquilidade e, fechando seus olhos, ouve o canto dos pássaros e sente o vento suave que desliza sobre sua pele; nesse estado de relaxamento e contemplação é tomado por uma profunda sensação de conexão com toda a vida ali presente, é envolvido por uma alegria e sensação de bem-estar profundas. Neste momento, essa pessoa estaria vivenciando um momento de transcendência do material, ou, com outras palavras, um momento de espiritualidade.


É possível dar outros exemplos: andar por um museu e deparar-se com uma obra de arte que te emociona, arrepia e sensibiliza; ter momentos de trocas intelectuais, debates e reflexões que te empolgam e inspiram; abraçar alguém que ama e sentir uma sensação de paz e alegria que não é possível descrever em palavras; observar o pôr do sol e ser tomado por um sentimento de admiração pela beleza e grandiosidade da natureza; receber o carinho de pessoas queridas durante seu aniversário e sentir com isso uma profunda gratidão pela vida e pelos afetos; orar com fé e sentir um tipo de conexão, amparo e conforto. Todas essas sensações ou percepções que ultrapassam a barreira do estritamente material são, no que estamos desenvolvendo aqui, momentos de espiritualidade.


Para ficarmos com um exemplo da cristandade, Jesus, segundo é possível observar no Novo Testamento, vivencia a espiritualidade independentemente de lugares, pessoas ou situações específicas. Pela vivência do amor em seu sentido mais profundo, do acolhimento aos que sofrem, da escuta aos necessitados, do contato com a natureza e com o povo, das orações, dos momentos em que ensinava junto ao povo ou simplesmente convivia com seus amigos, ele provavelmente vivenciava, com frequência, essas sensações de transcendência da matéria. Dessa forma, a espiritualidade de Jesus não estaria restrita somente à religião institucionalizada ou a templos religiosos, mas se estenderia por qualquer situação cotidiana da vida. Nessa perspectiva, é possível inclusive não professar nenhuma religião e ainda assim ser pleno de espiritualidade. Não é difícil encontramos exemplos de religiosos sem espiritualidade e de pessoas que não tem qualquer vínculo religioso, mas são cheias de espiritualidade.


Sendo assim, se a religião é cultura, logo obra humana, a espiritualidade me parece ser algo inerente ao próprio ser humano e, portanto, talvez mais vinculada a natureza que a cultura. Dessa forma, a espiritualidade seria um elemento da natureza no ser humano.

Para encerrar, gostaria de citar um trecho do livro “O amor como revolução” do Pastor Henrique Vieira, pessoa que admiro muito em sua espiritualidade cheia de humanidade, abertura e sem dogmatismos:

Espiritualidade é abertura, fundamentalismo é fechamento. Espiritualidade se move nas perguntas, fundamentalismo, em certezas irretocáveis. Espiritualidade é experiência e contemplação, fundamentalismo é doutrina. Espiritualidade se move no amor e na liberdade, fundamentalismo, na culpa e no medo. Espiritualidade transita nas diferenças e percebe a diversidade como expressão sagrada, fundamentalismo vê a diversidade como maldição. Portanto, a experiência religiosa é saudável quando alimenta a espiritualidade sem sufocá-la. (VIEIRA, 2019, p. 65)

Por mais espiritualidade livre e aberta e menos religião dogmática e sectária. Deixo com vocês meus desejos de muita saúde, inspiração e paz

 


REFERÊNCIAS

VIEIRA, Henrique. O Amor como Revolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.

 

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