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Política, ética e Espiritismo

Por Bruno Lins Quintanilha – 2ª ed. Agosto 2024 - brunolquinta@gmail.com


O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação entre política, ética e Espiritismo. Aponto, de antemão, que em minha percepção, esse trinômio é indissociável, ou seja, a doutrina espírita possui um arcabouço ético que, inevitavelmente, tem consequências políticas nos indivíduos e na sociedade. Diria, inclusive, que essa mesma lógica é válida para qualquer religião ou movimento religioso que, até onde concebo, sempre possuirá sua ética própria e suas repercussões políticas.


Para começar, penso que é importante definir claramente o que cada palavra ou termo principal que utilizo significa para mim, para que, dessa forma, seja possível estabelecer uma comunicação mais sistematizada, clara e didática.


O primeiro termo que quero definir é Espiritismo. O Espiritismo é, ao meu ver, um campo do conhecimento – ainda muito inexplorado –, uma filosofia espiritualista e um estímulo a uma religiosidade livre, aberta e autônoma.


Enquanto campo do conhecimento, busca investigar e compreender as relações que se estabelecem entre nós e os Espíritos[1]. Enquanto filosofia espiritualista, o Espiritismo questiona sobre o que está para além do estritamente material, refletindo sobre as consequências da imortalidade da alma e das relações entre os Espíritos e os homens por meio da mediunidade. A partir dos seus conceitos principais (mediunidade, Espírito, Deus, evolução e reencarnação) e de sua ética (pautada no respeito, na empatia, na não violência e no altruísmo)[2], o Espiritismo pode vir a estimular religiosidade, ou seja, uma conexão do indivíduo com algo superior, mas uma conexão independente de instituições, lugares e regras.


O segundo termo relevante a definir é o de ética. O dicionário online Michaelis (2022) aponta uma definição que é simples e didática: “Conjunto de princípios, valores e normas morais e de conduta de um indivíduo ou de grupo social ou de uma sociedade.” Ou seja, sob essa perspectiva, a ética seria como um código de conduta, um conjunto de valores que norteiam nossas opções e ações enquanto indivíduos, grupos ou sociedade. Dessa forma, seria possível falar de uma ética médica, de um conjunto de valores e condutas que seriam imprescindíveis para uma prática médica de excelência. É possível falar de uma ética docente, de uma ética cristã, de uma ética espírita, e assim sucessivamente.


Sendo assim, o Espiritismo também possui uma ética que, em minha opinião pessoal, está pautada em 4 valores: respeito, não violência, empatia e altruísmo. Deduzo essa ética espírita a partir de todas as leituras que até então tive a oportunidade de vivenciar no Espiritismo, adotando as obras de Kardec como pilar central – em especial, a 2ª parte do livro “O céu e o inferno”. Dessa maneira, em minha percepção, a pessoa que queira estar em coerência e consonância com a proposta espírita para o indivíduo e para a sociedade precisa ter esses valores que citei anteriormente como norteadores de suas ações.


O terceiro termo a definir é o de política. Para mim, de forma muito resumida, eu diria que podemos dividi-la em dois tipos:


1) A política institucional, ou seja, aquela que em uma democracia é praticada por representantes eleitos periodicamente pelo povo (vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e presidentes) nas mais diversas instâncias oficiais do Estado ou por meio de instituições da sociedade civil como sindicatos, partidos, associações, conselhos, etc.


2) A política da vida cotidiana, ou seja, meus posicionamentos perante os fatos que acontecem, minhas opiniões acerca dos mais variados assuntos, minhas visões de mundo e minha ação na sociedade.


Diria que, no mundo atual, em um Estado democrático, é impossível não estarmos relacionados ou sermos neutros em qualquer uma dessas duas formas de política:


(...) em qualquer atividade que se exerça, faz-se política, toma-se posição nesse mundo desigual. Cada um de nós é chamado a se posicionar. Não existe neutralidade. Em tudo que fazemos contribuímos para manter ou transformar a realidade; dominar ou mudar; oprimir ou libertar. (BETTO, 2021, p. 88)

Na primeira concepção de política aqui expressa, é impossível a neutralidade porque no contexto de Brasil, todos somos obrigados a votar para eleger nossos representantes na esfera municipal, estadual e federal. E ainda que algum indivíduo opte por não votar ou votar em branco ou nulo, ainda assim, ele está se posicionando politicamente.


Na segunda concepção de política também é impossível ser neutro porque todos nós agimos na sociedade, temos visões de mundo, opiniões e posicionamentos acerca dos fatos. Importante observar que, a depender das circunstâncias, mesmo o silêncio ou a inação também não deixam de ser uma espécie de posicionamento político.


Feita a apresentação do que entendo como sendo cada um dos termos principais deste artigo, fica a questão: como política, ética e Espiritismo se relacionam?


A meu ver, a resposta para isso é simples. Se a política está presente tanto no voto quanto na vida, é forçoso afirmar que todos nós temos valores que nos guiam em nossos votos e em nossas ações e opiniões cotidianas. Ou seja, todos temos, ainda que não percebamos, algum tipo de ética que norteia nossa forma de ver e agir no mundo. Sendo assim, ética e política estão inevitavelmente conectadas. E no caso do espírita, a ética espírita e a política também estão conectadas.


A questão é que se adoto a ética espírita e seus valores (respeito, não violência, empatia e altruísmo) na minha vida, isso repercutirá na minha atuação na política institucional, por meio do voto, como também na política da vida, por meio dos meus posicionamentos e ações. Assim também ocorrerá, em minha visão, com o judeu e a ética judaica, o muçulmano e a ética islâmica, o cristão e a ética cristã, um agnóstico ou ateu e a ética que estes adotam para sua vida[3], etc.

Sendo assim, seguir a ética espírita como eu a concebo, inevitavelmente, faz com que nossos votos, posicionamentos e ações cotidianas sejam contra:


a) Qualquer forma de violência e opressão (tortura, racismo, lgbtfobia, xenofobia, machismo, preconceito religioso, fome e miséria, desemprego, brutais desigualdades sociais, corrupção, uso da máquina pública para fins pessoais, etc.).


b) Contra qualquer forma de autoritarismo (ditaduras, ausência de liberdade de pensamento, ausência de liberdade religiosa, ausência de cultura democrática, etc.).


c) Contra qualquer forma de exploração do ser humano.


d) Contra qualquer forma de exploração da natureza (poluições indiscriminadas, caça, destruição dos recursos e patrimônios naturais, maus tratos aos animais, etc.).


Aylton Paiva (2014, p. 94) vai apontar que:

“é indispensável que, embasado nos princípios espíritas, se trabalhe para remover as causas geradoras da miséria, da ignorância e dos vícios.”

Peguemos um exemplo concreto. Jesus é uma figura histórica e religiosa muito relevante para diversas matrizes religiosas e, no Espiritismo, é também encarado como um exemplo e inspiração. Muito embora tenha vivido em um tempo histórico, em um recorte geográfico e em uma cultura muito diferente do Brasil de início do século XXI, ele legou exemplos de conduta e de posicionamentos que são, de certa forma, atemporais. Lendo os evangelhos, no novo testamento, é possível observar que Jesus não tinha envolvimento com a política institucional da época, mas tinha sim forte envolvimento na política da vida, pois sempre se posicionava a favor dos pobres, dos oprimidos, das vítimas da violência e do preconceito, acolhia aqueles que queriam se renovar para o amor e a generosidade. Jesus se posicionava contra o fundamentalismo religioso, contra o uso da religião para oprimir. Não se vê nos textos um Jesus omisso, mas sim um Jesus atuante na política da vida, do cotidiano, um Jesus que defende a mulher que seria apedrejada, um Jesus que acolhia cegos, deficientes, leprosos, que jamais se negava a receber aqueles que sinceramente o procuravam, um Jesus que combatia as injustiças por meio da não violência, um Jesus preocupado com o bem-estar do ser humano, com o amor em seu sentido mais profundo e amplo.


Frei Betto, no livro “Espiritualidade, amor e êxtase” propõe que a atuação de Jesus estava centrada em 4 aspectos básicos

1) Soberania da vida

2) O direito dos pobres

3) A partilha

4) O poder como serviço


Segundo Frei Betto:

Não haverá verdadeira democracia enquanto esses quatro pressupostos não estiverem estruturalmente assegurados para todos: direito de acesso às condições dignas de vida; combate às causas da miséria e da pobreza; partilha dos ‘bens da Terra e dos frutos do trabalho humano’, como se reza à mesa eucarística; e poder como serviço. (BETTO, 2021, p. 57)

Junto a isso, julgo também importante apontar algumas observações a respeito da relação entre política e Espiritismo: não acredito numa bancada espírita no legislativo ou em anúncios de candidatos políticos na casa espírita, o que seriam práticas extremamente inadequadas; entretanto, acredito numa casa espírita que acolhe, que cuida, que estimula uma cultura democrática, que tanto quanto possível acompanha a sociedade e a ciência.


Num outro lado, também gostaria de observar que não acredito que seja saudável e empático obrigarmos pessoas a se posicionarem sobre algo que elas não queiram ou não se sintam confortáveis para fazê-lo. O respeito ao momento e jeito de cada um também é elemento imprescindível. Da mesma forma como também jamais podemos obrigar uma pessoa a pensar como nós. Podemos discordar, mas precisamos respeitar.


Por fim, para concluir, gostaria de apontar que a religião tem inevitavelmente uma dimensão política, pois pode tanto favorecer a manutenção quanto a subversão de determinada ordem social, além de, através da ética que adota e das visões de mundo que estimula influenciar na ação política institucional e cotidiana das pessoas[4].


E que, por fim, o Espiritismo precisa ser um estimulante para a construção de uma sociedade melhor, onde extingamos a violência, a opressão, a exploração, onde nenhuma pessoa passe fome ou tenha que dormir na rua, onde a natureza seja respeitada devidamente e utilizada de forma sustentável. Onde a vida esteja acima do lucro. O Espiritismo precisa estimular e fortalecer a cultura democrática e uma mentalidade preocupada com o coletivo. E a caridade, em minha percepção, precisa passar a ser encarada não apenas como atuar individualmente no auxílio do próximo em trabalhos sociais ou voluntariados, mas também atuar pela melhoria estrutural da sociedade.

 

Referências

BETTO, Frei. Espiritualidade, amor e êxtase. Petrópolis: Vozes, 2021.

KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo [tradução da Redação de Reformador em 1884]. 56. ed. Brasília: FEB, 2013.

MICHAELIS. Verbete “ética”. Disponível em: < https://michaelis.uol.com.br/> Acesso em jul 2022.

PAIVA, Aylton. Espiritismo e Política: contribuições para a evolução do ser e da sociedade. 1. ed. Brasília: FEB, 2014.


[1] Para identificar o objeto de estudo do Espiritismo na ótica kardequiana, recomendo ler o “preâmbulo” da obra O que é o Espiritismo, de Allan Kardec.

[2] Para maiores explicações a respeito dos conceitos e dos valores da ética espírita, recomendo a leitura de minha obra “O que é o Espiritismo? Uma tentativa de resposta para o século XXI”. Caso deseje, solicite-a por e-mail que envio gratuitamente.

[3] Importante observar que nem toda ética está necessariamente relacionada a um segmento religioso. Além disso, cabe também observar que dentro de cada segmento religioso é possível que existam disputas internas em torno dos valores que constituiriam a ética daquele segmento. Ou seja, é possível que tenhamos mais de uma ética cristã por exemplo, derivada de grupos cristãos que discordam entre si em algumas questões.

[4] Sobre a relação entre política e Espiritismo, indico a leitura do livro “Espiritismo e Política: contribuições para a evolução do ser e da sociedade”, de Aylton Paiva, editado pela FEB.

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